Foram analisadas 94 amostras de tecido tumoral conservadas em parafina (José Guilherme Datorre et al./Journal of Oral Microbiology )
Ao analisar amostras de pacientes, pesquisadores do Hospital de Amor identificaram a espécie Fusobacterium nucleatum em quase 60% dos casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe. Microrganismo também já foi associado ao desenvolvimento de câncer colorretal
Ao analisar amostras de pacientes, pesquisadores do Hospital de Amor identificaram a espécie Fusobacterium nucleatum em quase 60% dos casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe. Microrganismo também já foi associado ao desenvolvimento de câncer colorretal
Foram analisadas 94 amostras de tecido tumoral conservadas em parafina (José Guilherme Datorre et al./Journal of Oral Microbiology )
Fernanda Bassette | Agência FAPESP – Por décadas, os cuidados com a saúde bucal foram associados principalmente à prevenção de cáries e doenças gengivais. No entanto, a ciência tem tornado cada vez mais evidente a importância do microbioma oral – um conjunto de microrganismos que habitam naturalmente a cavidade bucal. Estudos recentes têm demonstrado ligações entre desequilíbrios nesse ecossistema microbiano e o desenvolvimento de cânceres de cabeça e pescoço, além de associações cada vez mais sólidas com o câncer colorretal.
Entre as espécies microbianas que mais têm chamado a atenção da comunidade científica está a Fusobacterium nucleatum, uma bactéria normalmente encontrada em baixos níveis na flora bucal de indivíduos saudáveis. Sua proliferação descontrolada, no entanto, tem sido associada a doenças inflamatórias (como periodontite e outros problemas da cavidade bucal) e, mais recentemente, ao aumento do risco de desenvolver tumores malignos em outras partes do corpo.
A associação da F. nucleatum com tumores despertou, há alguns anos, o interesse de pesquisadores do Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos), que iniciaram estudos sobre o papel do microrganismo no câncer colorretal. Mais recentemente, com apoio da FAPESP e de outras agências de fomento, o grupo expandiu as investigações para entender sua possível atuação nos tumores de cabeça e pescoço. Descobriu que, nesses casos, a presença da bactéria está associada a melhor prognóstico e maior sobrevida. Os resultados foram publicados no Journal of Oral Microbiology.
Liderado pelo pesquisador Rui Manuel Reis, diretor científico do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Amor, o estudo utilizou uma metodologia ultrassensível (o PCR digital) para detectar a presença da F. nucleatum no tecido tumoral. Para isso, os pesquisadores analisaram 94 amostras de pacientes com diferentes tipos de câncer de cabeça e pescoço tratados na instituição.
“Realizamos a análise intratumoral a partir de material de arquivo parafinado [conservado em parafina], que foi usado originalmente para diagnóstico desses pacientes”, explica Reis. “Com as metodologias mais tradicionais, seria difícil identificar a presença dessa bactéria com a mesma precisão em material degradado, como o de parafina. No entanto, a técnica de PCR ultrassensível oferece uma alta confiabilidade e sensibilidade – até mesmo traços mínimos de DNA bacteriano podem ser detectados”, destaca.
O diferencial, segundo o pesquisador, foi detectar a bactéria dentro das células tumorais, um achado surpreendente. “Se analisarmos a saliva de uma pessoa, é provável que encontremos essa bactéria, já que ela está normalmente presente na cavidade bucal e compõe o biofilme dental. O que não se esperava, porém, é que ela estivesse localizada dentro do microambiente tumoral”, ressalta Reis.
Melhor prognóstico
Ao longo de aproximadamente cinco anos, os pesquisadores acompanharam os dados clínicos dos pacientes e constataram que a presença da F. nucleatum nos tumores estava associada a um prognóstico mais favorável. Ela foi identificada em 59,6% dos casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe (62,1%) do que de cavidade oral (53,6%).
Pacientes cujos tumores apresentavam a bactéria tiveram sobrevida média de 60 meses, enquanto os demais viveram, em média, 36 meses – uma diferença significativa. “Não esperávamos esse resultado, pois, em outros tipos de câncer, como o colorretal, a presença da bactéria costuma estar associada a maior agressividade e menor sobrevida”, comenta Reis.
Apesar do achado promissor, os pesquisadores ainda não compreendem completamente o motivo dessa associação positiva entre a presença da F. nucleatum e o melhor prognóstico nos casos de câncer de cabeça e pescoço. Uma das hipóteses é que a bactéria atue na regulação de fatores imunológicos, potencializando a resposta do sistema imune e, assim, tornando o tumor menos agressivo. “Ainda não temos essa resposta, mas vamos aprofundar as investigações. Esse será o próximo passo”, diz o pesquisador.
Outra linha de estudo buscará entender se a presença da F. nucleatum nos tumores pode influenciar a resposta às terapias, o que abriria caminho para abordagens mais personalizadas no tratamento desses pacientes. Se confirmada, a bactéria poderá se tornar um importante biomarcador para o prognóstico do câncer de cabeça e pescoço.
“Mostramos que mesmo usando material antigo e em pequenas quantidades conseguimos detectar essa bactéria. Ou seja, se no futuro ela for validada como biomarcador, já temos uma técnica eficaz para identificá-la no tecido tumoral”, destaca Reis.
Uma possível oncobactéria?
Na avaliação de Reis, a análise do microbioma oral torna-se cada vez mais essencial na compreensão da oncologia moderna. “Mais do que apresentar um resultado definitivo, este é um estudo pioneiro, que chama a atenção para a relevância dessa bactéria no contexto tumoral, e não apenas em doenças bucais”, afirmou Reis.
Este é apenas o começo de uma nova linha de investigação. “Essa bactéria está emergindo como uma importante moduladora no contexto do câncer e pode consolidar o uso do termo ‘oncobactéria’”, afirma. “Se for comprovado que ela participa da origem do câncer, antibióticos poderão até ser considerados como terapia complementar à quimioterapia e à radioterapia.”
Pesquisas futuras poderão revelar se a presença da F. nucleatum está relacionada a diferentes respostas ao tratamento, abrindo caminho para estratégias mais personalizadas. A partir desse conhecimento, será possível identificar com mais precisão quais terapias são potencialmente mais eficazes para cada tipo de câncer, com base na presença ou ausência da bactéria.
A doença no Brasil
O câncer de cabeça e pescoço engloba uma série de tumores malignos que podem aparecer na boca, orofaringe, laringe, nariz, seios nasais, nasofaringe, órbita ocular, pescoço e tireoide. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), os principais fatores de risco são tabagismo, etilismo e infecção pelo vírus HPV, má higiene bucal e a desnutrição.
Dados do Inca apontam que aproximadamente 80% dos casos diagnosticados no Brasil entre 2000 e 2017 foram identificados em estágios avançados, o que reduz significativamente as chances de sucesso no tratamento. Esses números reforçam a importância de estratégias para o diagnóstico precoce e o desenvolvimento de novas ferramentas prognósticas, como as apontadas neste estudo.
O artigo Intratumoral Fusobacterium nucleatum is associated with better cancer-specific survival in head and neck cancer patients pode ser lido em: www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/20002297.2025.2487644#abstract.
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