Em entrevista à Agência FAPESP, a antropóloga Rita Amaral fala sobre o São João, que está mais vivo do que nunca (foto: André Augusto Castro/UnB)
O ciclo junino no Nordeste é marcado por grandes festas populares, momento em que o clima muda e a tradição e a modernidade se reúnem. Em entrevista à Agência FAPESP, a antropóloga Rita Amaral fala sobre o São João, que está mais vivo do que nunca
O ciclo junino no Nordeste é marcado por grandes festas populares, momento em que o clima muda e a tradição e a modernidade se reúnem. Em entrevista à Agência FAPESP, a antropóloga Rita Amaral fala sobre o São João, que está mais vivo do que nunca
Em entrevista à Agência FAPESP, a antropóloga Rita Amaral fala sobre o São João, que está mais vivo do que nunca (foto: André Augusto Castro/UnB)
Agência FAPESP - Quem já esteve em junho no Nordeste do Brasil sabe que não é exagero. A temporada de festas juninas é algo que faz parte do dia-a-dia, seja na capital ou no interior. O clima muda, quem mora fora volta para ver seus familiares e até os políticos voltam para os seus redutos. Afinal, é tempo de São João.
Em entrevista à Agência FAPESP, Rita Amaral, do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, aborda várias questões relacionadas à festa. A especialista em cultura urbana é autora do livro Festa à Brasileira: sentidos do festejar no país que "não é sério", de 2001.
Para quem acha que as tradições juninas são coisas do passado, ou que a chegada da mídia a lugares como Campina Grande (PB) ou Caruaru (PE) desfigurou a manifestação cultural, Rita é categórica: "A efervescência das mudanças é que mantém tudo vivo".
Agência FAPESP - As festas juninas do Nordeste ainda podem ser consideradas tradicionais?
Rita Amaral - Lembro de uma rapaz do Nordeste que me falou o seguinte durante a pesquisa que fiz na região: "A Festa de São João aqui é maravilhosa. É época de namoro, época em que quem está distante vai rever a família". As festas têm um aspecto social muito grande. Isso sempre foi assim e continua. Tem alguns códigos que são apenas locais, não são compartilhados com o turista, por exemplo. Tem coisa que só quem é do lugar é que sabe. Como é a brincadeira, qual é o código do namoro, qual é a devoção ao santo, o que se deve comer, o que se faz e o que não se deve fazer. O turista aprecia isso apenas esteticamente. A grande questão quando se discute a festa atualmente é se ela vai se descaracterizar por conta do turismo. Ela está virando um grande espetáculo?
Agência FAPESP - Quer dizer que a tradição existe, mas é sempre retrabalhada?
Rita - Acho que sim. Não existe mais aquela coisa, por exemplo, de ficar todo mundo em volta de uma fogueira assando batata-doce. Mas tem a dança, tem a devoção ao santo, a roupa de caipira, o chapéu. As bandeirinhas não são mais de papel, mas de plástico. As roupas são compradas nas lojas. Os caipiras de agora são do estilo country. Ocorrem muitas fusões, novas criações. A mudança social faz com que existam espaços para inovações divertidas. Como a gaydrilha, em que homem dança com homem, ou a sapadrilha, na qual mulher dança com mulher. Isso faz parte, não se trata de algo menos legítimo.
Agência FAPESP - Isso também é visto desse modo pelo nordestino?
Rita - Eles não acham que isso tudo represente algum tipo de deturpação. Pelo contrário, essas criações são vistas como contribuições para manter a tradição, que sempre foi construída com inovações. Nada deve ser necessariamente congelado. Todos querem contribuir. Os elementos básicos são mantidos, como o fogo, a dança, a devoção ao santo e as promessas. No caso de Santo Antônio, a intenção do casamento, do amor, permanece. A ligação com o futuro também continua. Tudo isso é um espaço aberto para o misticismo descompromissado.
Agência FAPESP - Quer dizer que os turistas apenas apreciam a festa e não conseguem vivenciá-la de forma plena?
Rita - Os nativos, do ponto de vista antropológico, dizem que quem está de fora vê a festa apenas como um pacote. Quem está dentro é que realmente aproveita. Tem a emoção do Santo Antônio, de São João. Os nordestinos vivem aquilo além daquela época. A festa não começou, por exemplo, no dia 13 de junho, quando se comemora o dia de Santo Antônio. Tudo começa no dia 14 do ano anterior. É uma vida em função da festa e com relação ao santo. O turista não compartilha. Outro ponto interessante é que os nordestinos não vêem pontos negativos na festa. No caso da Oktoberfest, para comparar, os moradores de Blumenau vêem problemas no caráter excessivamente turístico.
Agência FAPESP - Existe algum exemplo para ilustrar essa dualidade entre quem está fora e quem está dentro?
Rita - A própria relação com Santo Antônio, as promessas que são feitas e a realização delas dentro da própria festa. Isso é uma das coisas que os turistas costumam não compartilhar por normalmente não terem a história prévia dos festejos. Por exemplo, num bumba-meu-boi o que ocorre ali dentro é o pagamento de uma promessa. Para as pessoas de fora pode parecer apenas uma dança sem sentido. Mas se trata de uma história que chegou ao final. Alguém fez uma promessa de que faria o boi dançar para o Santo Antônio ou para o São João. É o final de algo bem-sucedido. É o sinal da presença dos santos na Terra. Os turistas não sabem que a fogueira presente na festa representa o próprio São João. Eles não se aprofundam, apenas participam como convidados.
Agência FAPESP - Do ponto de vista histórico, quais as origens da festa junina?
Rita - Ela vem dos portugueses e dos espanhóis. Em Portugal, as festas de Santo Antônio e de São João são muito importantes. Tem também a contribuição dos franceses, por causa da quadrilha. As tradições são todas do catolicismo. A festa costuma ser cheia de pequenos rituais, para agradar ao santo, para acender a fogueira ou quando se vai fazer mastro, que é um símbolo que mostra a ligação entre a Terra e o céu. Todos os momentos são ritualizados. E todos têm uma base histórica. E como o ciclo junino tem uma importância política fundamental, a passagem das tradições de geração para geração não se perde. As festas são praticamente patrocinadas pelos políticos.
Agência FAPESP - E a relação com as colheitas?
Rita - Quando o Nordeste era mais rural, as festas estavam mais relacionadas à colheita do milho ou da batata-doce. A modernização e as mudanças culturais fazem com que as festas sejam reinterpretadas. Hoje em dia, já não é mais uma festa caipira. É uma festa folclórica, uma festa cult. As pessoas saem para dançar forró como uma prática legítima da cultura brasileira. Se percebeu, e também existe um discurso político dos grupos interessados, que ser diferente não é ser pior. Não tem mais uma separação clara entre rural e urbano. É por isso que dá até para fazer Festa de São João na Praça da Sé. Antigamente não havia espaço para isso. Era coisa de caipira, de fazenda.
Agência FAPESP - A música também veio com os europeus?
Rita - A música das quadrilhas veio com os portugueses e os franceses. Se você ouvir bem a música tradicional francesa, quando tocada com acordeão, ela lembra um pouco as canções tocadas nas quadrilhas. Claro também que houve influência de negros e índios.
Agência FAPESP - E o forró, que também é muito tocado nas festas?
Rita - Ele vem da música folclórica portuguesa, mas também é música regional. Com a valorização do country e do caipira também não existe problema de se aceitar urbanamente o forró. Antigamente era um escândalo. Hoje em dia não.
Agência FAPESP – Há muitas diferenças entre as festas juninas do Sul e Sudeste do país e as do Nordeste?
Rita - As outras regiões não participam religiosamente da festa de São João. Os nordestinos têm uma relação religiosa, política e até ideológica com a festa. Eles se afirmam com a identidade do nordestino caipira e assumem isso de uma maneira honrada. Eles se orgulham disso.
Agência FAPESP - As festas juninas têm crescido em todo o país?
Rita - Em termos de tradição, o Nordeste e o Norte merecem todas as citações. Mas em todo o país elas têm se tornando importantes. Já não são mais aquelas festas onde se toca apenas música e quadrilha, com pipoca e quentão. Com a inserção na tradição, como chamamos em antropologia, as novas gerações estão conseguindo introduzir também a parte delas e isso está fazendo com que as festas cresçam. Nos bairros de São Paulo há muitas festas. Elas estão sendo retomadas. Hoje há, por exemplo, o bumba-meu-boi da comunidade do Maranhão no Morro do Querosene, no bairro de Butantã. No interior de São Paulo ela sempre esteve presente de uma maneira muito forte.
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