Edith Stein frequentou o círculo de pensadores aglutinados em torno da fenomenologia, vindo a ser assistente de seu fundador, o filósofo Edmund Husserl (foto:Divulgação)

A desafiadora trajetória da filósofa Edith Stein
11 de agosto de 2015

Judia converteu-se ao catolicismo, tornando-se freira carmelita. Assassinada pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz, foi canonizada pelo papa João Paulo II

A desafiadora trajetória da filósofa Edith Stein

Judia converteu-se ao catolicismo, tornando-se freira carmelita. Assassinada pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz, foi canonizada pelo papa João Paulo II

11 de agosto de 2015

Edith Stein frequentou o círculo de pensadores aglutinados em torno da fenomenologia, vindo a ser assistente de seu fundador, o filósofo Edmund Husserl (foto:Divulgação)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – É possível produzir um trabalho acadêmico sobre uma trajetória humana que desafia a academia? Foi o que fez a psicanalista Ilana Waingort Novinsky em sua tese de doutorado. O resultado da pesquisa compõe o livro Em busca da verdade em tempos sombrios: Edith Stein, publicado com o apoio da FAPESP.

De origem judaica, Edith Stein (1891 – 1942) doutorou-se em filosofia, tendo sido uma das dez primeiras mulheres da Alemanha a obter tal título. Frequentou o círculo de pensadores aglutinados em torno da fenomenologia, vindo a ser assistente de seu fundador, o filósofo Edmund Husserl (1859 – 1938). Destinada a uma trajetória intelectual brilhante, teve sua carreira acadêmica abortada devido às limitações que, ainda naquela época, pesavam contra as mulheres. Profundamente impactada pela leitura da autobiografia de Teresa de Ávila (1515 – 1582), converteu-se ao catolicismo, exercendo intensa atividade no meio católico, como professora, conferencista, tradutora e escritora. Em 1933, levando sua conversão às últimas consequências, tornou-se freira, entrando para a austera ordem das Carmelitas Descalças.

Na clausura, escreveu seu livro mais importante, Ser Finito e Ser Eterno, no qual buscou aproximar as filosofias de Husserl e de Tomás de Aquino (1225 – 1274). Tendo que se refugiar em um convento holandês para escapar às perseguições antissemitas na Alemanha, foi capturada pelos nazistas quando estes ocuparam a Holanda. Enviada ao campo de concentração de Auschwitz, morreu, aos 51 anos, assassinada na câmara de gás. Em 1998, após um processo-relâmpago, essa filósofa judia, que na juventude chegou a viver uma crise de fé, foi canonizada pelo papa João Paulo II, como Santa Teresa Benedita da Cruz. Hoje, à parte da dimensão religiosa e mística, vários estudiosos em todo o mundo esmiúçam sua obra, destacando contribuições originais nos campos da filosofia, da antropologia, da psicologia, da pedagogia e do pensamento feminista, entre outros.

“Há pessoas que são expostas ao que há de mais profundo na natureza humana. São pessoas que, por assim dizer, contemplam o abismo. Vivem experiências radicalmente transformadoras e provocam, nos outros, experiências semelhantes. É o caso dos grandes poetas e escritores, por exemplo. Por que eles nos tocam tanto? Porque dão voz ao mais profundo de nós mesmos. Edith foi uma pessoa desse tipo. Uma pessoa abismal”, disse Novinsky à Agência FAPESP.

A pesquisadora, que é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, foi orientada em seu doutoramento por Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Novinsky contou que foi apresentada à biografia e à obra de Edith Stein por Gilberto Safra, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP): “Eu participava de um laboratório de estudos da psicanálise coordenado por ele na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi por seu intermédio que vim a conhecer Edith Stein. Sua história de vida e suas escolhas me impressionaram muito. Bem como seu livro A estrutura da pessoa humana”, afirmou.

Individualidade heterodoxa

Ao resenhar o livro de Novinsky, Mário Miranda Filho, do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), deu a seu texto o sugestivo título de “Edith Stein, um desafio à Academia”. Como lidar academicamente com essa individualidade tão heterodoxa?

A preocupação inicial da pesquisadora foi contextualizá-la: “Comecei estudando a sociedade alemã do final do século XIX e das quatro primeiras décadas do século XX, em especial o período da República de Weimar (1919 – 1933); a situação da comunidade judaica nesse meio; a trajetória da família Stein, composta por judeus liberais muito integrados na cultura alemã; o círculo centralizado por Husserl e frequentado por Edith, que agregava pensadores do porte de Martin Heidegger, Max Scheler e Alexandre Koyré”, disse Novinsky,

A família Stein observava o Shabat (Dia do Descanso) e celebrava as chamadas “grandes datas” da tradição judaica: Rosh Hashaná (Ano Novo), Iom Kippur (Dia do Perdão) e Pessach (Páscoa). Também cumpria as prescrições do Kashrut (regras relativas à alimentação). Mas, como a maioria dos judeus liberais alemães, fortemente identificados com a sociedade moderna envolvente, seu judaísmo era bastante epidérmico.

Novinsky sublinha que, embora fosse dotada de uma extraordinária capacidade de expressão, Edith possuía uma riqueza interior que jamais desvelava aos olhares externos. E uma extrema radicalidade na busca da verdade. Órfã de pai aos dois anos de idade, era a caçula de 11 irmãos. Referindo-se ao seu caráter impenetrável, os irmãos mais velhos diziam que ela era o “livro dos sete selos”.

Aos 15 anos, quando morou por dez meses com uma irmã mais velha, já casada, em Hamburgo, Edith viveu uma crise de fé. “Deliberada e conscientemente”, como declarou mais tarde, deixou de rezar. Alguns estudiosos falam de um período de ateísmo. Mas Novinsky argumenta que não há informações suficientes para sustentar tal suposição. “Na verdade, eram as primeiras dúvidas e incertezas de uma adolescente que se encontra pela primeira vez longe da casa familiar. A meu ver, Edith pode ter deixado de praticar os rituais judaicos, influenciada pela irmã e pelo cunhado, que eram agnósticos, mas certamente sua religiosidade continuava viva”, escreveu a pesquisadora em seu livro.

O fascínio pelo conhecimento assim como seu talento a encaminharam naturalmente para a vida intelectual. De volta à cidade natal, Breslau (Wroclaw, hoje parte da Polônia), ingressou na universidade para estudar literatura, psicologia e filosofia, dividindo seu tempo entre a leitura, com destaque para a Ética, de Spinoza (1632 – 1677), e a participação nos grupos estudantis interessados em reformas sociais e educacionais.

“Mas, apesar de se engajar em causas como o sufrágio feminino e se interessar pela política, tendo inclusive participado ativamente dela na época da República de Weimar, Edith, ao contrário de outros estudantes, jamais aderiu ao socialismo”, informou a pesquisadora. “No livro A estrutura da pessoa humana, ela inclusive critica o socialismo, por pretender nivelar as pessoas, apagando as diferenças, as singularidades. Para ela, as diferenças eram fundamentais. Bem como a empatia, que possibilita que um se reconheça no outro e reconheça o outro em si mesmo.” A empatia, aliás, seria o tema de Edith em seu trabalho de doutoramento.

Logo os horizontes intelectuais de Breslau se tornaram estreitos demais para ela e, fortemente impressionada pela leitura das Investigações lógicas, de Edmund Husserl, Edith, aos 21 anos, partiu para estudar com ele em Gotinga (Göttingen). O contato com o fundador da fenomenologia e com outros integrantes do Círculo Fenomenológico, especialmente Max Scheler, constituíram, para a jovem, experiências fundamentais. “Edith acreditava que um dia teria uma posição como professora de filosofia, pois pensava que as discriminações contra as mulheres, assim como contra as minorias e os judeus, iriam desaparecer”, escreveu Novinsky.

Depois de atuar como enfermeira da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, ela concentrou toda a sua energia na tese de doutorado. Trabalhando das seis da manhã à meia-noite, praticamente sem interrupção, chegou a perder 10 quilos no período. Mas, apesar de receber a nota máxima, summa cum laude, a tese não lhe abriu as portas da academia. Várias tentativas de conseguir um cargo universitário foram barradas pela misoginia dominante. E mesmo Husserl, que mais tarde a empregou como assistente, não a tratava de igual para igual. Isso fez com que, a despeito de considerá-lo “o filósofo do nosso tempo”, a jovem se afastasse, buscando trilhar seu próprio caminho.

Conversão ao cristianismo

Foi depois disso que ocorreu a inflexão mais surpreendente em sua trajetória: a conversão ao cristianismo. Novinsky lembrou que muitos judeus alemães se converteram no período, entre eles, o próprio Husserl: “Mas se converteram principalmente ao protestantismo, que era a religião majoritária. Edith, ao contrário, escolheu o catolicismo”.

Para a pesquisadora, a conversão resultou da conjugação de vários fatores, que procurou investigar em seu livro. Mas, sem dúvida, o ponto culminante foi a leitura da autobiografia de Teresa de Ávila. “Ao ler essa autobiografia, Edith experimentou uma identificação muito forte com Teresa e decidiu pelo catolicismo. Expressou inclusive o desejo de ingressar imediatamente na ordem das Carmelitas Descalças, mas adiou esse passo radical por recomendação de seus orientadores religiosos. Ela não sabia, pois na época isso ainda não era conhecido, que Teresa de Ávila era de família cristã nova, portanto também de origem judaica”, afirmou Novinsky.

Sempre franca em sua autobiografia, Edith jamais escreveu sobre os motivos de sua conversão. Como se os verdadeiros motivos pertencessem ao domínio do inefável, chegou mesmo a dizer, em uma carta famosa, que “não se pode falar nem escrever sobre isso”. “Ao relatar sua experiência”, disse Novinsky, “Edith argumenta que, quando chega ao limite do conhecimento racional, ou a pessoa se desespera, porque já não tem como prosseguir, ou reconhece que existe outro tipo de conhecimento possível”.

Seguiram-se nove anos de intensa atividade nos meios católicos, como professora e conferencista. Sem abandonar o chamado método fenomenológico, Edith engajou-se na tradução para o alemão de importantes textos latinos de Tomás de Aquino, buscando, ao mesmo tempo, uma aproximação entre a fenomenologia e o tomismo.

Em 1933, com a ascensão dos nazistas ao poder, ela, como todos os judeus, foi proibida de dar aulas ou conferências. Foi nesse contexto que, realizando finalmente sua aspiração mais íntima, pediu ingresso no convento. Novinsky enfatizou que não houve nenhuma intenção escapista nessa decisão. “Na verdade”, disse a pesquisadora, “ela recebeu a oferta de sair da Alemanha para ser professora na América do Sul, mas recusou, para não ficar tão longe de sua mãe idosa e porque ser carmelita era realmente o seu desejo”.

De fato, os muros do convento, que a separavam do mundo, não ofereciam proteção efetiva contra a bestialidade nazista. E sua presença ali punha inclusive em risco a segurança da própria habitação carmelita. Em 31 de dezembro de 1938, na noite de Ano Novo, em um carro dirigido pelo médico do convento, Edith foi levada às pressas e às escondidas para a Holanda. Sua irmã Rosa, que também se converteu ao catolicismo, tornando-se carmelita leiga, juntou-se a ela mais tarde. 

Manuscrito inacabado

Mas a Holanda também não constituía um destino seguro. O país foi ocupado por tropas alemãs em maio de 1940. Na tarde de 2 de agosto de 1942, dois agentes da Gestapo, a temida polícia secreta nazista, bateram à porta do convento holandês em busca das irmãs Stein. O manuscrito do último livro de Edith, uma biografia do místico carmelita Juan de la Cruz (1542 – 1591), ficou inacabado. “Olhando para sua irmã Rosa, assustada, que chorava, ela teria dito: ‘Vem, vamos com nosso povo’”, escreveu Novinsky.

Dias antes de Edith e a irmã serem mortas na câmara de gás de Auschwitz, um comerciante judeu, que sobreviveria ao campo de concentração, testemunhou a calma, a dignidade e o altruísmo com que ela procurava consolar e ajudar as demais prisioneiras, cuidando também de lavar, pentear e alimentar as crianças pequenas, abandonadas por suas mães desesperadas.

Sua conduta nos últimos dias de vida, filosófica na mais elevada acepção da palavra, lembrou a de Sócrates na iminência da morte. Este trecho de Ser Finito e Ser Eterno, seu livro mais importante, talvez ajude a entendê-la: “Meu próprio ser, tal como o conheço e tal como me conheço nele, é nulo; eu não existo por mim mesma e, por mim mesma, nada sou; em cada momento me encontro frente a este nada, e, momento após momento, preciso ser reinvestida com o dom do ser. E, no entanto, este ser vazio ou nulo é ser, e por isso em todos os momentos estou em contato com a plenitude do ser”.

Título: Em busca da verdade em tempos sombrios: Edith Stein
Autora: Ilana Waingort Novinsky
Editora: Humanitas
Lançamento: 2014
Páginas: 334
Preço: R$ 42
Mais informações: www.editorahumanitas.com.br/detalhesLaSQL.php?cod=852
 

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