Barros ministrará amanhã (26/07) a 6ª Conferência FAPESP 2024 (foto: Daniel Antonio/Agência FAPESP)

Entrevista
“É preciso atuar em várias frentes para superar a lógica neocolonial”
25 de julho de 2024

De passagem pelo Brasil para o lançamento de seu livro mais recente e para apresentar a 6ª Conferência FAPESP 2024, o sociólogo guineense Miguel de Barros concedeu entrevista à Agência FAPESP

Entrevista
“É preciso atuar em várias frentes para superar a lógica neocolonial”

De passagem pelo Brasil para o lançamento de seu livro mais recente e para apresentar a 6ª Conferência FAPESP 2024, o sociólogo guineense Miguel de Barros concedeu entrevista à Agência FAPESP

25 de julho de 2024

Barros ministrará amanhã (26/07) a 6ª Conferência FAPESP 2024 (foto: Daniel Antonio/Agência FAPESP)

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Miguel de Barros atua em várias frentes – ambiental, social, cultural –, transitando de alternativas energéticas a políticas de inclusão de gênero e pesquisas em antropologia cultural, para mencionar somente algumas de suas múltiplas atividades. Nascido em Bissau, capital da Guiné-Bissau, em 1980, ele é sociólogo especializado em planejamento, investigador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), na Guiné-Bissau; do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Netccon-UFRJ), no Brasil; e membro do Conselho para o Desenvolvimento de Pesquisa em Ciências Sociais em África (Codesria). Foi responsável pela elaboração de várias políticas públicas na Guiné-Bissau, contemplando questões como sustentabilidade ambiental, segurança alimentar, inclusão de gênero e inclusão de pessoas portadoras de deficiências.

Além disso, desde 2012, dirige a organização não governamental Tiniguena, engajada na proteção da biodiversidade, promoção da consciência ambiental e construção de modelos duráveis de bem-estar social; e é o fundador da Corubal, uma cooperativa de divulgação de obras científicas e culturais em seu país. Foi eleito pela Confederação da Juventude da África Ocidental a personalidade mais influente do ano de 2018 e recebeu o Prêmio Humanitário Pan-Africano de Excelência em Pesquisa e Impacto Social em 2019. Vir anualmente ao Brasil, onde desenvolve atividades de pesquisa racial e religiosa no Recôncavo Baiano e pesquisa ambiental e social na Amazônia, em temporadas de três meses, faz parte de sua multifacetada agenda.

Autor de vários livros, Barros está novamente em nosso país para lançar suas produções mais recentes. E também para tratar do tema “Mudanças climáticas, transição energética e soberania alimentar na África: Desafios e Alternativas”, na 6ª Conferência FAPESP 2024.

Profundamente influenciado pelo legado de Amílcar Cabral, o líder da independência da Guiné-Bissau, e pela atuação na África dos brasileiros Paulo Freire e Milton Santos, ele explica que o motivo de atuar em tantas frentes é que “só construindo campos de múltiplas intervenções e que nos favoreçam a múltiplas conexões podemos ter todos os elementos para enfrentar as ordens neocoloniais e neoliberais que põem em causa perspectivas de vida mais sustentáveis”. Publicam-se aqui trechos da entrevista que concedeu à Agência FAPESP.

Agência FAPESPQuais são os impactos que as mudanças climáticas já estão provocando na África?
Miguel de Barros – Temos inundações, secas, altas temperaturas, salinização dos campos agrícolas, erosão das zonas costeiras. A África é um continente que, na sua essência, produz de forma natural e biológica. Mas é também o continente que mais tem sofrido com os impactos decorrentes das formas de produção do Norte Global e das transferências dos resíduos para o Sul. Dos dez países que mais sofrem com a poluição em nível global, sete são africanos. O número de mortes em consequência da pandemia de COVID-19 foi da ordem de 6,7 milhões, porém, o número de mortes por poluição ambiental foi muito maior, chegando a 9 milhões.

Agência FAPESPComo responder a essa situação?
Barros – Esses elementos todos têm um impacto enorme na vida das pessoas: mais pobreza, menos possibilidades de produção de alimentos, mais migrações forçadas. E isso gera tensões e pressiona as estruturas públicas, que deveriam criar as condições necessárias para a prestação de serviços às comunidades. Mas a África carrega um fardo enorme. Quando reúne recursos que deveriam ser destinados a investimentos públicos para proteção social, não consegue empregá-los dessa forma porque os serviços da dívida externa são extremamente altos. Aquilo que seria o potencial para o desenvolvimento econômico e a proteção social é entregue aos credores. Então, como investir na agricultura, na saúde, na educação, na inovação tecnológica, nas possibilidades de mobilidade dentro do espaço africano? E, quando buscamos efetivar todo o potencial africano, aparecem também as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), que criam várias barreiras na mobilidade dos produtos, dos serviços, das empresas, afetando as possibilidades de criação de riqueza capaz de permitir investimentos para a resolução das questões prementes. Para avaliarmos corretamente, temos de colocar os impactos das questões ambientais e das mudanças climáticas em uma perspectiva de justiça social, levando em conta a necessidade de regulação das formas de produção, de consumo e de modos de vida, de modo a permitir que os países africanos, que são as maiores reservas de recursos naturais, tenham também melhores condições. Estima-se que, até 2050, mais de 18% da população economicamente ativa da África vai estar em situação de desemprego, com um risco acrescentado de insegurança alimentar. A combinação desses fatores leva a disputas por espaço, disputas por terras, com altos níveis de conflito, que ultrapassam a escala local e nacional e adquirem uma dimensão regional. Os problemas estão de tal forma concatenados que é impossível resolvê-los isoladamente. Já não se pode trabalhar só na questão da segurança alimentar, porque há uma questão de emergência climática. Não se pode trabalhar só na questão da emergência climática, porque há uma questão de emprego. Não se pode trabalhar só na questão de emprego, porque há uma questão de pobreza. São elementos sistêmicos que demandam uma abordagem regional ou até continental, para que as respostas face a esses impactos também tenham a possibilidade de impactar a vida das pessoas.

Agência FAPESPO senhor tem afirmado que a África é responsável por apenas 4% das emissões globais de gases de efeito estufa. E acaba de dizer que é o continente que mais sofre com as variações climáticas. Acha que os centros desenvolvidos (Estados Unidos, União Europeia, Japão, China) deveriam reparar financeiramente essa situação e patrocinar alternativas sustentáveis no continente africano?
Barros – Quando falamos em reparação, precisamos entender que não é só uma questão financeira. A reparação é um processo que permite às civilizações concretizar suas cosmovisões. A África foi vítima da escravidão e da colonização. Não foram extraídos apenas recursos naturais, mas também pessoas: homens, mulheres, crianças, gerações. E não parou nisso, porque, hoje, a África também é vítima de um modelo econômico neoliberal, que expropria tudo aquilo que é seu capital para um mercado externo que não lhe dá depois o devido retorno. Então, quando consideramos, por exemplo, questões como a do conforto ambiental, nos deparamos com enormes desigualdades na esfera global. Em 2019, a energia consumida pela França e pela Alemanha foi superior a toda energia consumida pelo continente africano. Assim, não podemos pensar em um processo de reparação financeira se não olharmos para a regulação das formas de vida, de produção, de consumo e de relação entre as sociedades. O que significa que, se por um lado podemos contabilizar os processos financeiros, que passam pelo fim do endividamento externo, pelo fim das restrições da OMC ao comércio internacional, há que olhar também para a forma de regulação dos modos de vida. Permitir, por exemplo, que mais da metade da população da África, que não tem acesso à energia e que é numericamente muito superior a toda a população do continente europeu, possa ter os mesmos níveis de acesso à energia, a mesma possibilidade de transição energética, a mesma liberdade no acesso às tecnologias que permitam uma transição energética limpa. Para que, depois, possamos chegar a outras perspectivas, como, por exemplo, o investimento no potencial natural, o investimento na conservação das áreas de proteção da natureza, o investimento na restauração dos ecossistemas, o fim do modelo neocolonial chinês de extrativismo dos recursos florestais, o fim do monopólio americano do petróleo. É isso que vai levar à reparação.

Agência FAPESPEm um artigo o senhor informa que, embora possua os maiores recursos solares do mundo, a África tem instalados apenas 5 gigawatts (GW) de painéis fotovoltaicos, menos de 1% da capacidade mundial instalada. Além de painéis fotovoltaicos, a produção de bioenergia, a partir da cana-de-açúcar e de outras fontes, seria também uma alternativa, considerando as vantagens dos recursos solares abundantes?
Barros – Em primeiro lugar devo dizer que é extremamente injusto exigir da África que faça a transição que o Norte Global está fazendo, quando ela ainda está nas fases primárias, tanto da emissão do carbono como das possibilidades de produção de energia limpa. Isso nos leva a crer que se deve aceitar uma transição mais lenta para o continente africano, porque não temos altos níveis de emissão, e precisamos assegurar que haja uma cobertura energética em todo o continente. Neste momento, só três países em África têm 100% da cobertura energética: Egito, Comores e Seicheles. Mas, se formos ver aquilo que está a ser pedido da África em termos de aceleração, também existe aí uma falácia. Por que o modelo neoliberal está a fazer o quê? Vou contar uma história muito prática. Portugal perdoou a dívida de Cabo Verde e converteu esse perdão no apoio a Cabo Verde para a obtenção da produção de tecnologia que possa permitir energias renováveis. Mas onde Cabo Verde deve comprar essa tecnologia? Em Portugal! Então, o capital que Cabo Verde poderia investir na transição energética é transferido para Portugal. Portanto, esse tipo de transição não ajuda, e muitos países estão a fazer isso. Há outra coisa também importante aqui. Eu defendo que, para os países que enfrentam insegurança alimentar, a transição energética não pode, em nenhuma circunstância, ser feita por substituição de culturas de alimentos por culturas de produção de energia. Nós não podemos substituir um campo de produção de arroz, de milho, por um campo de cana-de-açúcar para produzir etanol. E nem podemos tomar a cana-de-açúcar, que é um produto também alimentar, para transformá-la em energia. Temos de encontrar um compromisso ético, que possa permitir a salvaguarda do acesso à alimentação, à segurança alimentar e ao comércio justo. Para o continente africano, há três fontes que são fundamentais para a produção de energia: o sol, os ventos e os rios. Nós temos possibilidades de criar mecanismos que permitam uma transversalidade no acesso à energia, que não segregue povos das suas terras, que não levem à perda de variedades de alimentos, que não provoquem a perda de saberes associados à produção ancestral desses alimentos e que potenciem a nossa capacidade econômica.

Agência FAPESPO pan-africanismo é uma ideia recorrente e muito forte nos artigos e livros que você escreve. Durante o processo de independência dos países africanos, que se estendeu pelas décadas de 1960 e 1970, esse conceito, do pan-africanismo, foi apresentado como o grande caminho para o continente africano, superando as mazelas deixadas pelo período colonial e unificando forças para a construção do futuro. Mas isso, infelizmente, não aconteceu. Por quê?
Barros – O pan-africanismo é uma utopia que continua a inspirar gerações. É verdade que, para alguns céticos, o pan-africanismo era uma utopia desconexa, que não fazia sentido, porque o processo pós-independência teve um contínuo colonial, porque houve guerras entre os países e no interior das nações, porque as elites se aburguesaram e ocorreu todo um movimento que levou à corrupção do Estado. Essa é uma narrativa dos céticos. Há uma outra narrativa, a dos otimistas, que diz que o pan-africanismo é sempre um processo em construção e que a África é o futuro, que a luta continua e a vitória é certa. Mas que, depois, não se consegue traduzir em ações e políticas que permitam que essas transformações sejam efetivas na vida das pessoas. Existe, finalmente, uma terceira perspectiva, mais realista, que recupera os elementos dinâmicos do pan-africanismo, lembrando que foi o processo dos países africanos que criou efetivamente a base para aquilo que é hoje a ONU [Organização das Nações Unidas], que os pan-africanistas africanos estiveram na vanguarda do processo de universalização dos direitos humanos, porque defenderam o fim da colonização e o fim da exploração de todas as formas, quer em relação a formas de trabalho ou de convivência entre sociedades. O processo da independência não foi um processo total. Os antigos colonizadores procuraram impor uma lógica para a manutenção do modelo econômico liberal e depois neoliberal, suportado pelo ajustamento estrutural com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), como elemento regulador do mercado financeiro. Isso condicionou as políticas. Posso dar um exemplo. Nos anos 1980, o presidente Thomas Sankara, de Burkina Faso, demonstrou que nenhum país do mundo se desenvolveu com a intervenção do FMI e do Banco Mundial. Então, afastou essa intervenção, e montou um programa de soberania, tanto econômica como cultural, que permitiu produzir localmente e consumir localmente, em todos os níveis. Dois anos depois ele foi assassinado, com o apoio da CIA [a agência central de inteligência dos Estados Unidos]. O mesmo havia acontecido, antes disso, com Patrice Lumumba [Congo] e Kwame Nkrumah [Gana]. Então, quando olhamos todo esse processo de intervenção externa do Norte Global para garantir a sua condição de privilégio no acesso aos recursos africanos, vemos que a África não teve até agora a possibilidade de construir, de fato, o seu próprio caminho de transformação.

Agência FAPESPO pan-africanismo ainda é um projeto viável? Com que características? Quais forças estariam dispostas hoje a sustentá-lo?
Barros – Neste momento, há dois movimentos extremamente interessantes. A União Africana [UA] está a trabalhar para o fim da exigência de vistos no interior da África e permitir a mobilidade sem fronteiras, como uma zona de livre comércio. Ao mesmo tempo, os 16 países que fazem parte da África Ocidental proclamaram o fim do franco CFA, a moeda que perpetuava uma relação de dependência para com a França, de modo que possa existir uma moeda com soberania da África Ocidental, que possibilite também a transação econômica, a mobilidade de produtos, produtores e serviços. Esses são sinais de que nós não só sabemos o caminho, mas estamos a encontrar formas de superar tudo aquilo que são as lógicas neocoloniais, que põem em causa a nossa transformação, permitindo que a cidadania africana encontre espaço para a construção de seu bem-estar. E o último exemplo tem sido de como as diásporas africanas estão a contribuir para essa transformação. A ajuda pública ao desenvolvimento do continente africano está na ordem de US$ 40 bilhões. Mas as remessas que vêm da diáspora africana são expressivamente maiores, da ordem de US$ 60 bilhões. E, quando vamos ver quem está fazendo essas remessas, descobrimos que a maior parte da migração africana está no próprio continente africano. Isso é um elemento de esperança. Mostra que os africanos chegaram a uma perspectiva de que é possível que o investimento do seu capital seja no próprio continente, mas isso passa por mudança das possibilidades da cidadania e também da mobilidade econômica.

Agência FAPESP No passado, o projeto pan-africanista foi muito impulsionado pelas personalidades carismáticas de grandes líderes, como Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto (Angola), Patrice Lumumba (Congo), Sékou Touré (Guiné), Kwame Nkrumah (Gana), Jomo Kenyatta (Quênia), Julius Nyerere (Tanzânia), Nelson Mandela (África do Sul), Léopold Senghor (Senegal). Como as gerações atuais se relacionam com o legado desses fundadores?
Barros – É interessante porque olhando, por exemplo, para Guiné-Bissau e Cabo Verde, este ano nós estamos a celebrar o centenário de nascimento de Amílcar Cabral. Ele é um ícone dos nossos países e também do mundo. Esteve na vanguarda de um processo em que dois países muito pequeninos, muito marginalizados, conseguiram derrotar uma potência econômica colonial, a partir de um projeto pan-africanista. E sem criar aquilo que seria o antagonismo anticolonizador, mas mobilizando o próprio povo do país colonizador para a luta contra esse sistema. Assim, tendo derrotado o colonizador em África, abriu caminho para a democratização da sociedade portuguesa. Hoje, embora Amílcar Cabral tenha sido ocultado no processo educativo e enquanto herói dos povos africanos, há uma coisa muito interessante. É que Amílcar Cabral tornou-se muito mais estudado do que qualquer outro líder africano nas universidades do mundo, inclusive aqui no Brasil, com teses de mestrado, doutorado. Mas é essencialmente no domínio da cultura de onde vem a maior apropriação, feita sobretudo pelas diásporas, por gerações que nasceram depois da independência. É pela música, o hip-hop, a arte performativa, o teatro, as artes visuais, o cinema e, principalmente, a literatura que esses ícones do pan-africanismo aparecem. Hoje, por exemplo, a súmbia, que é o gorro que Cabral utilizava, tornou-se um elemento de estilo dos jovens. Encontrarmos gente com o gorro de Cabral, com a boina de Sankara, com camisetas com as imagens desses líderes. São elementos da autoestima, cada vez mais em voga. Essa geração está a resgatar não só o pensamento, mas também a atualizar a ação em prol da África, em prol do mundo, em prol da liberdade, da dignidade dos povos, e a transformar isso em um bem cultural acessível às comunidades. A música hip-hop é transversal a todas as sociedades, a todas as culturas e chega aos centros a partir das periferias, feita por gente que está em uma situação de fragilidade social, de fragilidade econômica, mas com alto espírito crítico, consciência cívica, que coloca essas questões ao serviço da comunidade. É essa forma de manifestação que nos tem permitido hoje fazer com que, por exemplo, os níveis de apropriação vão muito para além do espaço político, muito para além do plano institucional formal, e se tornem uma coisa de massas, a ponto de que a construção da figura do herói não seja a canonização do elemento político-partidário, mas, acima de tudo, do cidadão, que contribuiu para a dignidade das pessoas, para um mundo mais justo e solidário, para a afirmação das sociedades sofridas enquanto gente com direito a conduzir o seu próprio destino.
 

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