Esta figura geométrica representa as relações de compatibilidade entre todas as medições de um experimento. Cada medição é representada por um vértice. E vértices conectados por uma aresta representam medições compatíveis. As duas medições do “Observador A” (vértices vermelhos) são compatíveis com todas as medições do “Observador B” (vértices azuis). A compatibilidade das medições de B é representada, no caso, pelo heptágono azul claro. Conjuntos de medidas que são compatíveis duas a duas são co
Trabalho teórico e experimental demonstrou que “não localidade” e “contextualidade” podem ser observadas ao mesmo tempo no mesmo sistema. Até agora, isso era considerado impossível
Trabalho teórico e experimental demonstrou que “não localidade” e “contextualidade” podem ser observadas ao mesmo tempo no mesmo sistema. Até agora, isso era considerado impossível
Esta figura geométrica representa as relações de compatibilidade entre todas as medições de um experimento. Cada medição é representada por um vértice. E vértices conectados por uma aresta representam medições compatíveis. As duas medições do “Observador A” (vértices vermelhos) são compatíveis com todas as medições do “Observador B” (vértices azuis). A compatibilidade das medições de B é representada, no caso, pelo heptágono azul claro. Conjuntos de medidas que são compatíveis duas a duas são co
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Concebida e formulada ao longo das três primeiras décadas do século 20, a teoria quântica já é centenária. Capaz de descrever com precisão uma ampla variedade de fenômenos – proeminentes nas escalas molecular, atômica e subatômica –, possui também um extenso rol de usos tecnológicos. Basta lembrar três aplicações que se tornaram quase onipresentes na vida cotidiana: os dispositivos a laser para leitura de códigos de barra, o LED (sigla em inglês para diodo emissor de luz) e o GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global).
Apesar disso, a compreensão dos fundamentos da teoria física quântica ainda não é inteiramente satisfatória. E alguns dos comportamentos que ela descreve são tão destoantes do chamado “senso comum”, baseado nas vivências empíricas do dia a dia, que surpreendem não apenas os leigos, mas até mesmo os físicos e filósofos da ciência. Alguns aspectos contraintuitivos da teoria quântica devem-se ao seu caráter probabilístico. Sendo um conjunto de regras para calcular as probabilidades dos possíveis resultados de medições realizadas sobre sistemas físicos, a teoria quântica, em geral, não é capaz de prever, no nível de uma única medição, qual resultado será obtido.
Uma das ideias desafiadoras posta em pauta pela física quântica é a da “não localidade”. Essa característica da realidade se manifesta quando dois ou mais sistemas são gerados ou interagem de tal maneira que os estados quânticos de uns não podem ser descritos independentemente dos estados quânticos dos outros. No jargão científico, diz-se que os sistemas ficam “emaranhados”, isto é, correlacionados fortemente (caso em que o estado quântico do todo não é dado por estados quânticos definidos de seus constituintes), a despeito da distância entre eles. Outra ideia desafiadora, que parece vir no sentido contrário, é a da “contextualidade”. Trata-se da hipótese de que os resultados de uma medição realizada sobre um objeto quântico dependem do contexto em que ela é feita – vale dizer, de outras medições compatíveis, realizadas conjuntamente com a primeira.
Nascidas com a teoria quântica, não localidade e contextualidade seguiram caminhos independentes por várias décadas. Um estudo realizado com um caso particular em 2014 chegou a demonstrar, inclusive, que apenas um dos dois fenômenos poderia se manifestar em um sistema quântico. Esse resultado ficou conhecido como “monogamia”. E seus autores conjecturaram que não localidade e contextualidade poderiam ser diferentes faces de um mesmo comportamento geral, que só se manifestaria de uma ou outra maneira.
No entanto, um novo estudo, conduzido por pesquisadores brasileiros e chineses, demonstrou, tanto teórica quanto experimentalmente, que isso não é verdade. A pesquisa, coordenada por Rafael Rabelo, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp), teve a participação de Gabriel Ruffolo e André Mazzari, também do IFGW-Unicamp; de Marcelo Terra Cunha, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc-Unicamp); de Tassius Temístocles, do Instituto Federal de Alagoas, e de Peng Xue e Lei Xiao, do Beijing Computational Science Research Center, na China. Artigo a respeito foi destaque na revista Physical Review Letters.
“Provamos que é, sim, possível observar concomitantemente ambos os fenômenos em sistemas quânticos. E a abordagem teórica, desenvolvida aqui, no Brasil, foi comprovada por um experimento de óptica quântica realizado por nossos colaboradores chineses”, diz Rabelo à Agência FAPESP.
Do ponto de vista fundamental, o novo trabalho demonstra, de forma definitiva, que dois dos aspectos fundamentais em que a física quântica mais difere da física clássica podem ser observados ao mesmo tempo no mesmo sistema, contrariamente ao que se acreditava. “Assim, fica evidente que não localidade e contextualidade não são manifestações complementares de um mesmo fenômeno”, comenta Rabelo.
Já do ponto de vista prático, a não localidade é um importante recurso para criptografia quântica; e a contextualidade é a base para um modelo específico de computação quântica; entre outras aplicações. “A possibilidade de se ter ambas, ao mesmo tempo, em um mesmo sistema, pode abrir caminhos para o desenvolvimento de novos protocolos de processamento quântico de informação e de comunicação quântica”, conjectura o pesquisador.
Um pouco de história da ciência
A ideia de não localidade foi uma espécie de resposta à objeção feita por Albert Einstein (1879-1955) ao caráter probabilístico da física quântica. Em um artigo seminal, publicado em 1935, Einstein, Boris Podolsky (1896-1966) e Nathan Rosen (1909-1995) questionaram a completude da teoria quântica. E, para isso, conceberam um experimento mental que ficou conhecido como “Paradoxo EPR” (sendo essas letras as iniciais dos sobrenomes dos três cientistas). A crítica de EPR sugeria que para justificar certas correlações não clássicas, advindas do emaranhamento, seria necessário que sistemas quânticos distantes trocassem informação de forma instantânea – o que contraria a teoria especial da relatividade. E que esse tipo de paradoxo decorreria do caráter incompleto da teoria quântica, que poderia ser corrigida com a incorporação de variáveis ocultas locais. Estas devolveriam à física quântica o caráter supostamente determinista da física clássica.
“Em 1964, John Stewart Bell (1928-1990) revisitou o trabalhou de Einstein, Podolski e Rosen e introduziu um formalismo elegante que englobava todas as teorias de variáveis ocultas locais, independentemente de propriedades particulares que cada uma poderia ter. Bell provou que nenhuma dessas teorias poderia reproduzir as correlações entre as medições realizadas em dois sistemas previstas pela física quântica. Esse resultado, que ficou conhecido como Teorema de Bell, é, na minha opinião, um dos mais importantes pilares da física quântica. A propriedade de tais correlações fortes, que não podem ser reproduzidas por nenhuma teoria local, é hoje conhecida como não localidade de Bell. Em 2022, John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger foram contemplados com o Prêmio Nobel de Física pela observação experimental da não localidade de Bell, dentre outras realizações”, informa Rabelo.
Outro importante resultado decorrente da discussão a respeito de variáveis ocultas foi apresentado em um artigo de Simon Kochen e Ernst Specker (1920-2011), publicado em 1967. Os autores demonstram que, devido à estrutura e às propriedades matemáticas das medições quânticas, qualquer teoria de variáveis ocultas que reproduza as predições da física quântica deve necessariamente exibir um aspecto de contextualidade.
“Apesar da motivação comum, o estudo da não localidade de Bell e da contextualidade de Kochen-Specker seguiu por caminhos independentes por bastante tempo. Apenas recentemente cresceu o interesse por saber se ambos os fenômenos poderiam se manifestar concomitantemente no mesmo sistema físico. Em um artigo publicado em 2014, Pawel Kurzynski, Adán Cabello e Dagomir Kaszlikowski disseram que não. Isso foi demonstrado a partir de um caso particular, mas de bastante interesse. Foi esse ‘não’ que conseguimos refutar agora com nosso estudo”, afirma Rabelo.
O estudo recebeu apoio da FAPESP por meio de Auxílio a Jovens Pesquisadores concedido a Rabelo; de Bolsa de Doutorado concedida a Ruffolo; e de Bolsa de Mestrado concedida a Mazzari.
O artigo Synchronous Observation of Bell Nonlocality and State-Dependent Contextuality, publicado em Physical Review Letters com o destaque de ser uma “sugestão do editor”, pode ser acessado em: https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.130.040201. Também está acessível gratuitamente na plataforma Arxiv.
A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.