Ao estudar o processo de cristalização do germânio e do selenieto de zinco durante o resfriamento, grupo do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros começa a responder questões fundamentais que têm intrigado cientistas de todo o mundo há mais de 70 anos (imagem: acervo dos pesquisadores)
Ao estudar o processo de cristalização do germânio e do selenieto de zinco durante o resfriamento, grupo do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros começa a responder questões fundamentais que têm intrigado cientistas de todo o mundo há mais de 70 anos
Ao estudar o processo de cristalização do germânio e do selenieto de zinco durante o resfriamento, grupo do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros começa a responder questões fundamentais que têm intrigado cientistas de todo o mundo há mais de 70 anos
Ao estudar o processo de cristalização do germânio e do selenieto de zinco durante o resfriamento, grupo do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros começa a responder questões fundamentais que têm intrigado cientistas de todo o mundo há mais de 70 anos (imagem: acervo dos pesquisadores)
Agência FAPESP* – Na escola se ensina que abaixo da chamada temperatura de fusão – que no caso da água, por exemplo, é de 0 oC – os líquidos se solidificam (cristalizam). Mas essa não é toda a verdade. Em determinadas condições, é possível manter uma substância no estado líquido, inclusive a água, gerando o que se chama de líquido super-resfriado.
Há, no entanto, um limite de temperatura abaixo do qual a matéria no estado líquido super-resfriado deve, necessariamente, seguir um de dois caminhos possíveis: cristalizar ou, em alguns casos, congelar temporariamente sem cristalizar, virando um vidro. Esse fenômeno tem sido um dos focos do Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros (CeRTEV) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Em relação a esse tema, uma proposição teórica desafiadora foi publicada em 1948 pelo professor da Universidade de Princeton (Estados Unidos) Walter Kauzmann, no periódico Chemical Reviews. Ele indicou que, se um líquido super-resfriado pudesse permanecer nesse estado em uma determinada temperatura – hoje denominada temperatura de Kauzmann –, sua entropia seria igual à entropia do mesmo material cristalizado. Teríamos, assim, uma situação inusitada (líquidos geralmente têm entropia maior do que os cristais isoquímicos), que ficou conhecida como Paradoxo de Kauzmann. O maior problema é que, se esse líquido continuasse sendo resfriado, sua entropia eventualmente se anularia em uma temperatura acima de 0 Kelvin (-273 oC ou zero absoluto), o que contraria a Terceira Lei da Termodinâmica (segundo a qual quanto mais próximo do zero absoluto um cristal perfeito estiver, mais a entropia se aproximará de zero).
Assim, o próprio Kauzmann propôs a existência de uma temperatura-limite para líquidos super-resfriados, que deveriam cristalizar antes de atingir a temperatura de Kauzmann. Porém, provar esse enunciado experimentalmente é praticamente impossível, já que, nessa faixa de baixas temperaturas, os fenômenos que precisam ser observados e medidos – nucleação de cristais e relaxação estrutural – podem demorar intervalos de tempo de milhões de anos para acontecer.
"A pergunta, para equacionar o paradoxo, é: o que acontece com um material super-resfriado até a temperatura de Kauzmann? Continua líquido, vitrifica ou cristaliza? Esta é a pergunta, mas mesmo após cerca de 400 trabalhos científicos sobre o tema, ninguém conseguiu medir experimentalmente essas propriedades na temperatura de Kauzmann para saber a resposta", explica Edgar Dutra Zanotto, coordenador do CeRTEV e do Laboratório de Materiais Vítreos (LaMaV) da UFSCar.
O que os pesquisadores da UFSCar fizeram foi utilizar a técnica de simulação computacional chamada de dinâmica molecular e, assim, mostrar, para duas substâncias – o germânio e o selenieto de zinco –, que a cristalização de fato acontece em uma temperatura bem superior à temperatura de Kauzmann.
"Com a dinâmica molecular, conseguimos ir diminuindo a temperatura e aferindo, grau a grau, quais os tempos para cristalizar e para o líquido super-resfriado relaxar e continuar líquido. Assim, para cada material, chegamos a temperaturas em que os líquidos cristalizam antes de relaxar e essas temperaturas estão acima das respectivas temperaturas de Kauzmann. Portanto, o paradoxo está resolvido para esses materiais", continua Zanotto.
"Confirmamos, assim, para o germânio e para o selenieto de zinco, que o paradoxo não existe, porque esses líquidos não conseguem chegar à temperatura de Kauzmann. Durante o resfriamento, eles cristalizam antes de chegar lá", atesta o pesquisador. Ele conta que estão realizando simulação similar também para a água – o que é mais complicado devido à complexidade da molécula. Segundo Zanotto, para que o paradoxo seja definitivamente derrubado, é preciso que outros pesquisadores alcancem resultados semelhantes para algumas outras substâncias.
Além da relevância teórica do estudo, o conhecimento produzido guarda potenciais aplicações relacionadas aos líquidos super-resfriados, como a conservação de órgãos para transplantes ou de fármacos.
Ao comentar como o paradoxo o intrigava desde o final dos anos 80, já que todos os líquidos usados para a fabricação de vidros (sua área de pesquisa) podem ser super-resfriados, Zanotto faz uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico.
"Essa é a função das ciências naturais: entender, descrever e prever fenômenos. Nós conseguimos entender como funcionam os processos de nucleação de cristais e relaxação estrutural, calcular as velocidades, as dinâmicas e verificar que os tempos de nucleação e relaxação se cruzam acima da temperatura de Kauzmann, ou seja, que abaixo dessa temperatura limítrofe um líquido super-resfriado não consegue relaxar antes de cristalizar, isto é, ele cristaliza antes de chegar à temperatura que caracterizaria o paradoxo."
Os resultados obtidos pela equipe do CeRTEV deram origem a dois artigos recentes. Um deles, intitulado Unveiling relaxation and crystal nucleation interplay in supercooled germanium liquid, foi publicado no periódico Acta Materialia e tem como primeiro autor Azat O. Tipeev, bolsista de pós-doutorado da FAPESP. O texto também é assinado por Zanotto e por José Pedro Rino, docente do Departamento de Física da UFSCar e supervisor de Tipeev. O estudo foi destaque na edição de novembro do Boletim da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat) e foi repercutido no boletim da Materials Research Society, associação internacional da área.
O segundo artigo, Relaxation, crystal nucleation, kinetic spinodal and Kauzmann temperature in supercooled zinc selenide, foi publicado na revista Computational Materials Science. A primeira autora é Leila Separdar, também bolsista de pós-doutorado. Rino e Zanotto são coautores.
No episódio 20 do podcast Ciência UFSCar, produzido pelo Instituto da Cultura Científica da UFSCar, a jornalista Mariana Pezzo conversa com Zanotto sobre esses estudos. O episódio pode ser conferido nos principais tocadores de áudio e na área de podcasts do site da Rádio UFSCar 95,3 FM em: www.radio.ufscar.br/podcast/cienciaufscar-17-12-2021/.
Um vídeo de divulgação sobre o tema pode ser conferido em: www.youtube.com/watch?v=eYIWiFeKt5o.
* Com informações da equipe de comunicação do Laboratório Aberto de Interatividade para a Disseminação do Conhecimento Científico e Tecnológico (LABi-UFSCar).
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