Com base em relato estudado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, pesquisadora da UFSCar cria aplicativo para ensinar crianças de 5 a 10 anos (ilustração: Wikimedia Commons)
Com base em relato estudado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, pesquisadora da UFSCar cria aplicativo para ensinar crianças de 5 a 10 anos
Com base em relato estudado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, pesquisadora da UFSCar cria aplicativo para ensinar crianças de 5 a 10 anos
Com base em relato estudado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, pesquisadora da UFSCar cria aplicativo para ensinar crianças de 5 a 10 anos (ilustração: Wikimedia Commons)
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Uma narrativa oral, originalmente em língua bororo, exposta em volume acadêmico escrito em francês; o texto francês vertido para o português; o material em português recriado em linguagem poética; o discurso poético convertido em jogo digital educativo: esta sequência de traduções foi o caminho percorrido por Jeriguigui e o Jaguar, uma saga indígena que se tornou também uma saga transcultural.
A história se baseia no relato As araras e seu ninho, recolhido por missionário italiano e explorado por Claude Lévi-Strauss (1908-2009) em seu livro O Cru e o Cozido, primeiro dos quatro volumes que compõem Mitológicas, a obra seminal do grande antropólogo belgo-francês. A narrativa e sua interpretação viraram poesia e aplicativo digital pelas mãos de Maria Sílvia Cintra Martins, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
“Esse objeto cultural é um dos resultados do projeto ‘Tradução, poética e artefatos culturais em práticas de letramento na educação infantil’, apoiado pela FAPESP. Seu objetivo pedagógico é levar a temática indígena para crianças da Educação Infantil e do primeiro ciclo do Ensino Fundamental”, afirma Martins.
Segundo a pesquisadora, além de contribuir para a implementação do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena no currículo escolar, conforme determina a Lei 11.645-08, o aplicativo é também uma tentativa de inovação no domínio dos multiletramentos. “Com previsão de lançamento para outubro, o aplicativo foi produzido nos moldes do gênero ‘game’, com várias fases, desafios e prêmios”, diz.
Como incontáveis lendas que povoam o universo mítico de vários povos em todo o mundo, a narrativa segue o roteiro da chamada “jornada do herói”, na qual um personagem, masculino ou feminino, geralmente jovem, enfrenta uma série de desafios para alcançar um determinado objetivo que, ao final, se revela como símbolo de sua própria realização como indivíduo. O herói ou heroína precisa vencer adversários e superar obstáculos. Mas conta com a ajuda providencial de alguém mais maduro, muitas vezes um ancião ou anciã, que o alerta sobre os perigos, o inicia em certos conhecimentos e eventualmente lhe dá um objeto com poderes protetores.
“Esse tipo de enredo, que aparece amplamente na literatura, no cinema e em tantos outros produtos culturais, exerce um enorme fascínio em crianças e adultos, porque lida com conteúdos arquetípicos que estão presentes no psiquismo de todos nós”, comenta Martins.
A saga é contextualizada junto à serra do Roncador, em Mato Grosso, e tem como protagonista o menino bororo Jeriguigui. Além dele, participam seu pai, sua avó, a onça-jaguar e vários outros animais, alguns em riscos de extinção: o urubu-de-cabeça-vermelha, as araras azul e vermelha, o jabuti, a raposa, o gavião real, o colibri, o gafanhoto. As grandes linhas do enredo são apresentadas em versos, escritos no estilo karaokê e acompanhados de áudio, logo no início do jogo:
“Você que gosta de histórias
E nasceu bem brasileiro
Vai agora se inteirar
De muito mito maneiro
Vai saber sobre xamãs
Que se transformam em jaguar
E de muitos matrinchãs
Que antes andavam em terra
Para isso tem à frente
Perigos e desafios
Tenha logo isso em mente
E vê se acerta, e não erra.”
“O material de base que utilizei, As araras e seu ninho, é um mito de origem de importância fundamental, pois trata da conquista do fogo pelos indígenas, na transição entre o cru e o cozido. Subtemas como a importância da preservação da natureza, a sustentabilidade e o empoderamento dos povos indígenas ajudaram a enriquecer o roteiro”, informa Martins.
A pesquisadora conta que seu maior cuidado foi evitar qualquer tipo de caracterização estereotipada dos personagens. O aplicativo não trata de indígenas genéricos – que, na verdade, não existem. Mas dos bororo, com suas feições corporais, seu modo de construir a aldeia, seus artefatos característicos. E, para isso, ela contou com a grande ajuda de Márcio Paromeriri Bororo, cantor e líder bororo.
“A pesquisa voltada para as narrativas mitológicas ocupou o primeiro semestre de 2020. Devido à pandemia, não pudemos fazer trabalho de campo. Nem ter acesso a certos acervos. Por isso, após a escolha da narrativa, realizamos, virtualmente, um levantamento de imagens – fotos e desenhos – representativas da geografia em que se inserem os bororo, dos artefatos, das peças de vestuário, dos adornos etc. Alguns volumes físicos nos ajudaram muito. Entre eles, A Epopeia Bororo, o Pequeno Dicionário Bororo/Português e a Arte Plumária e Máscaras de Danças dos Indígenas Brasileiros. As imagens foram, então, enviadas à equipe de informática contratada, para que o desenhista Hugo Cestari se baseasse nelas e em seus detalhes. E, à medida que o trabalho dele avançava, mandávamos o material para a avaliação de Márcio Paromeriri Bororo, que fez várias recomendações úteis para garantir a autenticidade”, conta Martins.
Paralelamente à feitura das imagens, a pesquisadora trabalhou na conversão da narrativa em linguagem poética. Vale lembrar que a linguagem poética é a forma, por excelência, dos grandes épicos da antiguidade: o Ramayana, o Mahabharata, a Ilíada, a Odisseia, a Epopeia de Gilgamesh etc. Foram recursos como rimas, aliterações e assonâncias que possibilitaram aos antigos memorizar uma quantidade prodigiosa de versos, antes que essas enormes narrativas transitassem da expressão oral para a escrita. São elas também que conferem um sabor especial às cantigas infantis atuais.
“O material poético foi, posteriormente, adaptado para o formato de jogo, apropriado para crianças de 5 a 10 anos. Um engenheiro de software especialista na construção de jogos nos orientou sobre como dividir as fases, sempre com novos desafios e premiações. O roteiro final possui 80 páginas, divididas em 12 fases, com seis cenários diferentes. E, no roteiro, foram introduzidos alguns jogos característicos das culturas indígenas, como o Jogo da Onça, por exemplo”, relata Martins.
A estrofe seguinte incentiva o pequeno jogador a seguir no jogo:
“Não desanime nem vá embora
O problema é bem profundo
Pois envolve todo o mundo
Países de norte a sul
Do belo planeta azul!
Vá juntando o chocalho,
O colar e o cocar
Jeriguigui nos espera
Logo o vamos salvar!
Vem conhecer mais histórias
Corre junto, aqui comigo
Veja esses animais
Alguns também em perigo”.
O jogo Jeriguigui e o Jaguar poderá ser acessado em outubro no site do Grupo de Pesquisa LEETRA (Linguagens em Tradução) e também em plataformas de aplicativos de jogos.
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