Análise de fósseis de duas espécies extintas, com uso de tomografia computadorizada, indica adaptações evolutivas e relações com os atuais bugios, macacos-aranha e monos-carvoeiros (imagem: André Menezes Strauss)

Reconstrução de crânios em 3D esclarece evolução de macacos do Novo Mundo
23 de maio de 2019
EN ES

Análise de fósseis de duas espécies extintas, com uso de tomografia computadorizada, indica adaptações evolutivas e relações com os atuais bugios, macacos-aranha e monos-carvoeiros

Reconstrução de crânios em 3D esclarece evolução de macacos do Novo Mundo

Análise de fósseis de duas espécies extintas, com uso de tomografia computadorizada, indica adaptações evolutivas e relações com os atuais bugios, macacos-aranha e monos-carvoeiros

23 de maio de 2019
EN ES

Análise de fósseis de duas espécies extintas, com uso de tomografia computadorizada, indica adaptações evolutivas e relações com os atuais bugios, macacos-aranha e monos-carvoeiros (imagem: André Menezes Strauss)

 

Peter Moon  |  Agência FAPESP – Crânios de duas espécies de primatas já extintas – Caipora bambuiorum e Cartelles coimbrafilhoi – foram examinados por tomografia computadorizada e reconstruídos em imagens tridimensionais por um grupo que reúne cientistas de diversos países. Foram usados no trabalho fósseis encontrados há quase 30 anos no fundo de uma gruta da Caatinga, no norte da Bahia.

As imagens foram comparadas com as de outros 14 primatas do Novo Mundo ainda viventes, o que permitiu descobrir adaptações e inferir relações até então desconhecidas daquelas duas espécies extintas com os macacos que atualmente habitam as matas das Américas do Sul e Central, além do Caribe.

“Pela primeira vez, foi conduzido um estudo da morfologia endocraniana [formato do interior de um crânio, considerado um reflexo direto da forma externa do cérebro] de platirrinos fósseis, os primatas do Novo Mundo”, disse André Menezes Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) e pesquisador colaborador do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE) do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP).

Os resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram divulgados em artigo publicado no American Journal of Physical Anthropology. O trabalho descreve a variação na forma do crânio e do endocrânio de 14 espécies de bugios (gênero Alouatta), macacos-aranha (Ateles), monos-carvoeiros (Brachyteles) e macacos-barrigudos (Lagothrix), além dos outros dois táxons extintos, Cartelles e Caipora. Das cerca de 350 espécies de primatas viventes em todo o mundo, os platirrinos formam o maior contingente, com pouco mais de 200 espécies.

O artigo é resultado de uma pesquisa liderada pelo antropólogo argentino Ivan Perez, do Museu de La Plata, da qual participou Cástor Cartelle (que dá nome à espécie Cartelles coimbrafilhoi), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), além de pesquisadores da USP, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e de instituições da Alemanha, Bélgica, Estados Unidos e França.

Além da FAPESP, apoiaram a investigação o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Fondo para la Investigación Científica y Tecnológica (FonCyT) e o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet). 

Os fósseis de Cartelles e Caipora estão depositados no Museu de História Natural da PUC-MG, em Belo Horizonte. Os 14 crânios de platirrinos viventes saíram das coleções do Museu de La Plata, do Museu Nacional (Rio de Janeiro), do Museu Argentino de Ciências Naturais (Buenos Aires) e do Museu Nacional de História Natural (Washington).

“Os 16 espécimes foram digitalizados usando um scanner médico de tomografia computadorizada. Um modelo virtual tridimensional do endocrânio foi gerado para cada amostra e os modelos de superfície 3D dos crânios foram extraídos dos dados tomográficos”, explicou Strauss à Agência FAPESP.

Como os espécimes fósseis (Cartelles e Caipora) apresentam alguns danos, particularmente na região dos arcos zigomáticos – que formam a proeminência da bochecha, parte da parede lateral e assoalho da órbita e partes das fossas temporal e infratemporal –, duas estratégias foram adotadas para poder analisá-los.

Segundo Strauss, no caso de Caipora, o arco zigomático direito está ausente, mas o lado esquerdo está intacto. “Assim, no modelo 3D, refletimos o lado não danificado, aproveitando a simetria bilateral, para o lado danificado. Dessa forma, obtivemos um espécime completo, virtualmente reparado”, disse.

“No caso de Cartelles, dado que ambos os lados estão ausentes, recorremos a um método de imputação para estimar a posição das partes em falta”, disse.

Perez digitalizou 26 marcos anatômicos e 373 marcos secundários ao longo das curvas e superfícies de cada endocrânio, bem como 64 referências anatômicas e 196 marcos secundários em cada crânio.

“Esses dados serviram de base a análises multivariadas para a comparação de todos os 16 espécimes nas suas mais variadas características, buscando similaridades e diferenças que indicassem padrões morfológicos [portanto, padrões adaptativos] entre todos eles”, disse Strauss.

Em outras palavras, uma vez que entre os espécimes viventes de macacos atelídeos – os maiores primatas do Novo Mundo, que hoje congrega bugios, monos-carvoeiros, macacos-aranha e macacos-barrigudos – havia crânios de bugios, de macacos-aranha, de monos-carvoeiros e de macacos-barrigudos, a comparação dos dados de todos esses com os de Cartelles e de Caipora serviu para indicar a qual ou quais daqueles gêneros da família dos atelídeos os dois fósseis seriam mais assemelhados e, portanto, mais aparentados.

Crânios em 3D

Strauss conta que os dados de Caipora se agruparam claramente próximos aos dados de macacos-aranha, monos-carvoeiros e macacos-barrigudos, que são em seu conjunto distanciados dos dados dos bugios.

Ou seja, os bugios possuem um ancestral comum com os outros gêneros de atelídeos e com Caipora, que é mais antigo do que o ancestral comum de macacos-aranha, monos-carvoeiros e macacos-barrigudos.

“Agora, quando se analisa a posição de Caipora unicamente com relação aos macacos-aranha, monos-carvoeiros e macacos-barrigudos, verifica-se que o fóssil se posiciona claramente próximo aos monos-carvoeiros”, disse Strauss.

“A hipótese inicial feita por Cástor Cartelle há 20 anos de que Caipora seria semelhante a um macaco-aranha gigante não se verifica, pois os nossos dados indicam que esse macaco extinto se assemelharia, na verdade, muito mais a um mono-carvoeiro ‘gigante’”, disse Strauss.

No caso do fóssil de Cartelles, os resultados das análises multivariadas revelaram surpresas. Em primeiro lugar, os dados não se agruparam claramente a nenhum dos quatro gêneros viventes de atelídeos, mas se posicionaram consistentemente preenchendo o espaço morfológico, antes vazio, que separa os bugios de macacos-aranha, monos-carvoeiros e macacos-barrigudos.

“Em relação às espécies fósseis, mostramos que a espécie Caipora bambuiorum se posiciona dentro da faixa observada de variação entre os monos-carvoeiros. Já Cartelles coimbrafilhoi ocupa uma região de formato endocranial que não se sobrepõe com a faixa de variação observada em nenhum dos atelídeos viventes. Dos quatro gêneros, Cartelles está mais próximo dos bugios [Alouatta] no que diz respeito ao espaço do interior do crânio [endocrânio], porém mais próximo dos macacos-barrigudos [Lagothrix] no que diz respeito ao formato de seu crânio”, disse Strauss.

“Verificamos que, quando removido o fator tamanho, Cartelles era um primata com características intermediárias entre bugios, de um lado, e macacos-aranha, monos-carvoeiros e macacos-barrigudos, de outro”, disse Strauss.

“Nossos resultados sugerem que dentro do clado atelídeo, a extinção de Caipora bambuiorum e de Cartelles coimbrafilhoi levou a uma perda de significativa variação biológica que não poderia ser antecipada sem a descoberta desses fósseis”, concluíram os autores no artigo.

Peter Lund e Cástor Cartelle

Toda a linhagem dos primatas do Novo Mundo, espalhados desde o norte da Argentina até o México e o Caribe, descende de um único bando de fundadores, formado por pequenos macacos africanos que, há cerca de 45 milhões de anos, teriam feito a travessia do antigo Atlântico Sul (que tinha um terço da extensão atual) em balsas formadas por vegetação flutuante.

A pesquisa de macacos fósseis nas Américas começou no Brasil há 183 anos, quando o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, em 1836, descobriu em uma caverna da região de Lagoa Santa (MG) os restos de um primata de dimensões muito maiores do que todos os platirrinos viventes.

Àquele macaco extinto há mais de 10 mil anos Lund deu o nome de Protopithecus brasiliensis, o “macaco ancestral brasileiro”, um parente próximo – porém com o dobro do tamanho – do mono-carvoeiro, o maior platirrino vivente.

Desde então, foram sendo achados fósseis (quase sempre dentes isolados e fragmentos de mandíbulas, porém pouquíssimos crânios) de platirrinos muito mais antigos, extintos há milhões ou dezenas de milhões de anos, na Patagônia argentina, no alto da cordilheira chilena, no altiplano boliviano, na selva amazônica peruana e em diversas ilhas caribenhas.

Apesar das mais de 30 espécies de platirrinos extintas descritas, Protopithecus nunca perdeu seu posto de gigante, muito maior que todos os demais.

Existem apenas duas exceções. Em 1992, foram encontrados em uma câmara recuada no interior da Toca da Boa Vista (BA), a maior caverna brasileira, os esqueletos quase completos de dois outros platirrinos gigantes, que viveram no final da Idade do Gelo, portanto há mais de 10 mil anos.

Ambos os fósseis foram estudados na PUC-MG por Cartelle, que descreveu um dos indivíduos como um macaco-aranha gigante de uma nova espécie, Caipora bambuiorum. No caso do segundo indivíduo, Cartelle identificou-o como sendo membro da espécie Protopithecus descrita por Lund.

Caipora e Protopithecus pertenciam à família dos atelídeos. O maior de todos é o mono-carvoeiro, que chega a 15 quilos, seguido pelos bugios, com no máximo 10 quilos. Caipora e Protopithecus, no entanto, eram 60% maiores. Em vida, deveriam superar os 25 quilos. Ou seja, tinham o tamanho de um babuíno africano.

Em 2013, graças ao trabalho de antropólogos norte-americanos, veio a se saber que aquele indivíduo achado na Toca da Boa Vista e identificado originalmente como Protopithecus pertencia, na verdade, a uma nova espécie: Cartelles coimbrafilhoi, nome que homenageia Cartelle.

Os pesquisadores identificaram Cartelles como aparentado dos bugios (gênero Alouatta), e não mais do mono-carvoeiro (Brachyteles), como havia sido proposto por Cartelle.

Agora, em 2019, o emprego de novas técnicas de investigação científica forneceu uma nova interpretação para os fósseis de Caipora e, especialmente, de Cartelles.

A construção de um modelo tridimensional do crânio de Cartelles permitiu concluir que o animal tinha adaptações morfológicas cranianas diferentes de qualquer outro primata do Novo Mundo, vivente ou extinto.

“Hoje, graças ao uso da tomografia computadorizada, Cartelles pode contar com uma nova análise, com novas conclusões. Nem tanto bugio nem tanto mono-carvoeiro, acredita-se agora que Cartelles, aquele macaco gigante do Pleistoceno encontrado na Bahia, possuía características cranianas únicas, que não são mais encontradas em nenhum outro primata do Novo Mundo”, disse Strauss.

O Protopithecus descrito por Lund não fez parte do estudo de Aristide, Strauss e colegas pela ausência de um crânio que pudesse ser tomografado. Os fósseis já encontrados apresentam elevado grau de fragmentação.

O artigo Cranial and endocranial diversity in extant and fossil atelids (Platyrrhini: Atelidae): A geometric morphometric study (doi: 10.1002/ajpa.23837), de Leandro Aristide, André Strauss, Lauren B. Halenar-Price, Emmanuel Gilissen, Francisco W. Cruz, Castor Cartelle, Alfred L. Rosenberger, Ricardo T. Lopes, Sergio F. dos Reis e S. Ivan Perez, está publicado em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ajpa.23837.
 

  Republicar
 

Republicar

A Agência FAPESP licencia notícias via Creative Commons (CC-BY-NC-ND) para que possam ser republicadas gratuitamente e de forma simples por outros veículos digitais ou impressos. A Agência FAPESP deve ser creditada como a fonte do conteúdo que está sendo republicado e o nome do repórter (quando houver) deve ser atribuído. O uso do botão HMTL abaixo permite o atendimento a essas normas, detalhadas na Política de Republicação Digital FAPESP.