John Sulston foi coordenador do Projeto Genoma Humano no Reino Unido e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 2002 (foto: Sanger Institute)

'O genoma é nossa herança comum'
25 de junho de 2004

Em entrevista exclusiva à Agência FAPESP, o inglês John Sulston, Prêmio Nobel de Medicina de 2002, fala sobre o Projeto Genoma Humano, do qual foi coordenador, defende que as conquistas da genética estejam disponíveis em bases públicas e alerta para os perigos da Lei de Biossegurança

'O genoma é nossa herança comum'

Em entrevista exclusiva à Agência FAPESP, o inglês John Sulston, Prêmio Nobel de Medicina de 2002, fala sobre o Projeto Genoma Humano, do qual foi coordenador, defende que as conquistas da genética estejam disponíveis em bases públicas e alerta para os perigos da Lei de Biossegurança

25 de junho de 2004

John Sulston foi coordenador do Projeto Genoma Humano no Reino Unido e ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 2002 (foto: Sanger Institute)

 

Por Heitor Shimizu


Agência FAPESP - "Além de frear o avanço da ciência no Brasil, uma lei como a Lei de Biossegurança pode fazer com que os cientistas deixem o país rumo a outros lugares onde possam continuar suas pesquisas". A dura sentença, que traz uma realidade possível mas absolutamente indesejável, vem de um dos principais cientistas das duas últimas décadas.

Ganhador do Prêmio Nobel de medicina de 2002, coordenador da participação do Reino Unido no Projeto Genoma Humano, primeiro diretor do Instituto Sanger, em Cambridge, e membro da Royal Society, além de ganhador de diversas condecorações e prêmios, como o Príncipe de Astúrias, a Medalha Darwin e o título de cavaleiro da ordem do império britânico, o inglês John Sulston, ou melhor, sir John, é conhecido entre seus pares como "o cientista dos cientistas".

Cabelos brancos, óculos de aros redondos, barba grisalha, o inglês de 62 anos parece mais à vontade em um laboratório, atrás de um bom microscópio, do que em premiações ou cerimônias realizadas ao redor do mundo para louvar os seus feitos científicos. Um deles, o primeiro seqüenciamento do DNA de um organismo multicelular, o do verme C. elegans, completado em 1998 junto com Sydney Brenner e H. Robert Horvitz, valeu aos três o Nobel e o tradicional US$ 1 milhão.

Mas há outro lugar em que ele se sente muito confortável: em um auditório. Especialmente se o assunto for genética, ética ou os desafios da ciência. Falando sobre isso, Sulston encantou uma platéia lotada, especialmente por estudantes e pesquisadores, no auditório do Conselho Brasileiro Britânico, em São Paulo, na quinta-feira (24/6).

O evento contou também com a presença de Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, e de José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP. Enquanto Mayana mostrou os dilemas éticos que cercam o cientista da área de genética, Perez falou sobre o papel importante que a Fundação paulista teve no estabelecimento de conhecimento e competência na área, como a criação da Rede Onsa, responsável pelo seqüenciamento do genoma de diversos patógenos, como o da Xylella fastidiosa.

Antes de dar a sua palestra, na qual falou também sobre o Projeto do Genoma Humano, o ousado e gigantesco projeto que seqüenciou o DNA do homem e colocou definitivamente a genética na linha de frente da ciência, sir John Sulston concedeu uma entrevista exclusiva à Agência FAPESP.


Agência FAPESP - Já se passaram quatro anos desde que o seqüenciamento do genoma humano foi anunciado. Quais os principais resultados dessa conquista científica?
John Sulston - Primeiro é preciso entender que o anúncio feito há quatro anos não era de algo completo. Foi essencialmente um anúncio político, motivado pela competição que havia entre o interesse público e o privado. Para evitar maiores conflitos entre as partes, resolvemos divulgar seqüências incompletas, que chamamos de esboço. O genoma humano só foi finalizado em 2003, ou seja, três anos depois. Mas é claro que os resultados divulgados em 2000 foram utilizados imediatamente, das mais variadas maneiras, por cientistas do mundo inteiro.

Agência FAPESP - Então, o que temos de mais importante atualmente na pesquisa a partir dos dados obtidos pelo Projeto Genoma Humano?
Sulston - Há muitas coisas. Posso citar duas. Uma é o Projeto HapMap, que é uma coleção com o objetivo de ter a maior variedade possível de seqüências do DNA humano. Isso é fundamental, pois o esboço que fizemos é uma referência, feito a partir do DNA de alguns indivíduos. Outra área de pesquisa importante é o seqüenciamento de diferentes organismos, que vem sendo feito em vários países. Um bom exemplo está aqui mesmo no Brasil, cujos cientistas seqüenciaram o genoma de vários patógenos. É por isso que procuro sempre ressaltar que o Projeto do Genoma Humano não é algo final, conclusivo, mas sim o substrato da pesquisa biológica que está sendo feita por cientistas de todos os lugares.

Agência FAPESP - O Projeto do Genoma Humano foi comparado com o Programa Apolo, pela grandiosidade da tarefa e de sua conquista. Após o homem ter chegado à Lua, as missões tripuladas subitamente se tornaram muito menos ambiciosas. Nada de Marte ou outras conquistas. Depois de ter o genoma humano seqüenciado, tendo alcançado a "Lua", os cientistas se voltaram novamente à "Terra", isto é, ao básico?
Sulston - O Programa Apolo tinha um único objetivo. Era parte da Guerra Fria, um desejo que os americanos tinham de mostrar que podiam fazer melhor do que a União Soviética. Não havia, na época, intenção de continuidade, de montar uma base permanente na Lua ou coisa do tipo. O Programa Apolo estava à frente de seu tempo. O Projeto do Genoma Humana é algo completamente diferente. Ele está exatamente em seu tempo, tendo passado a ser imediatamente utilizado por todo mundo. Eu não acho boa essa analogia entre os dois projetos. Permita-me fazer outra. Quando vamos ao teatro, nós vemos luzes. Precisamos de luzes para que possamos enxergar. Mas a luz não é a peça, ela é simplesmente o que torna a peça possível. O genoma humano faz exatamente isso: ilumina a pesquisa biomédica. Ele não a dirige nem a controla, mas sim precisa que todos estejam livres para fazerem seus papéis.

Agência FAPESP - Por que, diferente de alguns cientistas, o sr. e outros colegas decidiram publicar todos os dados obtidos no Projeto Genoma Humano em bases públicas, para que qualquer um pudesse consultar, deixando de lucrar com os resultados de sua pesquisa?
Sulston - Isso é algo que nem discutimos. É fundamental que os dados estejam disponíveis e que possam ser utilizadas por todos. Não é apropriado reter a informações privadamente, pois isso impediria pesquisas futuras e a eqüidade, fazendo, por exemplo, com que os cientistas tenham que pagar por informação. Se isso ocorresse, os pesquisadores com maiores financiamentos poderiam conseguir os dados e os outros simplesmente seriam deixados à margem do desenvolvimento científico. O genoma é nossa herança comum e deve estar disponível a todos.

Agência FAPESP - Os cientistas brasileiros estão muito preocupados com a Lei de Biossegurança, que está atualmente no Senado Federal e que, entre outros problemas, proíbe a utilização de células-tronco para fins de clonagem terapêutica. De que modo uma medida governamental como essa pode afetar a ciência de um país?
Sulston - Ela certamente pode causar muitos danos. No Reino Unido, estabelecemos uma distinção entre pesquisas com células-tronco para fins terapêuticos e pesquisas com fins reprodutivos, o que comumente é chamado de clonagem humana. Nós não permitimos a clonagem humana, mas sabemos da importância e permitimos a clonagem terepêutica. É claro que temos que lembrar que estamos falando de pesquisa. Nós ainda não temos tratamentos médicos com compravação de que as células-tronco curam alguma coisa. De qualquer modo, uma lei como essa da biossegurança, além de frear o avanço da ciência no Brasil, pode fazer com que os cientistas deixem o país rumo a outros lugares onde possam continuar suas pesquisas. Isso é um debate ético. As pessoas têm diferentes pontos de vista em relação ao embrião humano. Na minha opinião, que também é a posição das leis britânicas, o embrião não é uma pessoa. Suas células podem ser utilizadas por bons motivos médicos, desde que sob permissão. É importante ressaltar: ninguém pode brincar com tais coisas livremente, somente quem estiver autorizado e souber o que faz.

Agência FAPESP - Poderia falar sobre a proposta feita recentemente pelo sr. e outros cientistas britânicos por uma legislação que evitaria a possibilidade da discriminação genética em que, por exemplo, empresas podem recusar a contratar indivíduos com base em resultados de exames de DNA?
Sulston - Isso é algo imprescindível. Deve ser feito e este é o momento. É cada vez maior o número de testes genéticos que podem ser realizados para determinar tratamentos. Trata-se de um recurso muito valioso para um bom tratamento médico, por exemplo, mas não podemos permitir que esses dados sejam usados para discriminar pessoas. Podemos traçar um paralelo com a posição feminina. Há um século, as mulheres eram consideradas inferiores apenas por serem mulheres. Uma discriminação genética comum na maioria dos países. O mesmo preconceito ocorreu em relação às diferentes raças. Por isso, é fundamental que tenhamos leis que garantam que as pessoas não serão novamente discriminadas.

Agência FAPESP - Cientistas chamam de DNA lixo os 97% do DNA que aparentemente não especificam genes, mas pesquisas recentes, inclusive no Brasil, têm mostrado o contrário. Qual é a importância do DNA lixo?
Sulston - Essa história sempre foi uma piada. Sempre soubemos que havia muito mais coisas a descobrir no genoma. Até mesmo aqueles que criaram o nome ‘DNA lixo’ sabiam perfeitamente que ele não era correto. É provavelmente certo dizer que alguns segmentos do genoma não são necessários, que são apenas um acúmulo da evolução. Mas mais que isso não sabemos. É por isso que decidimos seqüenciar o genoma humano, era a única maneira de descobrir. Por isso que reafirmo, o Projeto Genoma Humano não foi um fim, mas um começo.


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