Estudo molecular sugere que a mandioca-mansa ou macaxeira possui uma história de dispersão diferente da mandioca-brava. Domesticação envolveu a seleção de variedades com menores teores de ácido cianídrico, possibilitando o consumo (fotos: Alessandro Alves-Pereira)

Forma mais popular da mandioca é consumida há 9 mil anos
19 de abril de 2018
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Estudo molecular sugere que a mandioca-mansa ou macaxeira tem história de dispersão diferente da mandioca-brava. Domesticação envolveu a seleção de variedades com menos ácido cianídrico, possibilitando o consumo

Forma mais popular da mandioca é consumida há 9 mil anos

Estudo molecular sugere que a mandioca-mansa ou macaxeira tem história de dispersão diferente da mandioca-brava. Domesticação envolveu a seleção de variedades com menos ácido cianídrico, possibilitando o consumo

19 de abril de 2018
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Estudo molecular sugere que a mandioca-mansa ou macaxeira possui uma história de dispersão diferente da mandioca-brava. Domesticação envolveu a seleção de variedades com menores teores de ácido cianídrico, possibilitando o consumo (fotos: Alessandro Alves-Pereira)

 

Peter Moon  |  Agência FAPESP – Mandioca, mandioca-mansa, macaxeira, aipim e vários outros nomes no Brasil. Manioc ou casava nos países de língua espanhola. Existem muitas formas para designar a espécie Manihot esculenta, que produz uma raiz rica em amido e foi domesticada há cerca de 9 mil anos. Estudos genéticos e arqueológicos indicam que isso ocorreu na região do Alto Rio Madeira, no atual estado de Rondônia.

A forma como se desenvolveu e evoluiu a transmissão do cultivo da mandioca pelas Américas ainda é algo nebuloso. Especula-se que a partir do centro original de domesticação no sudoeste da Amazônia o cultivo da mandioca se disseminou entre as etnias indígenas seguindo o curso dos grandes rios amazônicos, que são até hoje as principais vias de transporte da região.

Tal hipótese necessitava de comprovação e esse foi o objetivo de um estudo da diversidade genética feito por Alessandro Alves-Pereira, que fez doutorado no Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), e atualmente é pós-doutorando no Departamento de Biologia Vegetal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho teve supervisão de Maria Imaculada Zucchi, pesquisadora do Instituto Agronômico (IAC), e contou com apoio da FAPESP. Resultados foram publicados nos Annals of Botany.

“A integração de estudos arqueológicos e etnobotânicos sugere que a dispersão da cultura da mandioca está ligada aos movimentos humanos pré-históricos ao longo dos rios amazônicos. A partir daí, decidimos usar técnicas de biologia molecular para buscar sinais genéticos de tal dispersão ao analisar a variação no genoma da mandioca”, disse Alves-Pereira.

O grupo – formado por outros pesquisadores da Esalq, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Universidade Federal do Amazonas – estudou os dois tipos de genoma de Manihot esculenta: o nuclear, que se encontra no núcleo das células, e o genoma do cloroplasto, a organela presente nas células das plantas onde é realizada a fotossíntese.

Cada genoma fornece um tipo de informação sobre a história evolutiva. O genoma do cloroplasto nas plantas angiospermas (o caso da mandioca) é geralmente transmitido de geração em geração unicamente pelo lado materno. Ou seja, ao se comparar o genoma de diversas amostras de mandioca coletadas em regiões diferentes, é possível construir árvores genealógicas da linhagem materna.

Com o genoma nuclear é diferente. Ele sofre recombinação a cada evento reprodutivo, ao mesclar partes dos genomas da planta-pai e da planta-mãe durante a fertilização do embrião.

“O genoma nuclear fornece uma ‘fotografia’ mais recente da diversidade da mandioca e revela maior variação do que o genoma do cloroplasto, mas não permite voltar muito no tempo para saber quando ocorreram as diversificações”, disse Alves-Pereira.

O material analisado veio do cultivo de agricultores familiares de 44 municípios ao longo de alguns dos principais rios amazônicos: Negro, Branco, Madeira, Solimões e Amazonas. Também foram coletadas amostras no nordeste do Pará e no sul de Rondônia.

Entre 2010 e 2015, foram coletadas amostras de folhas de 596 indivíduos, sendo 325 de mandioca-brava, 226 de mandioca-mansa, 28 da forma selvagem Manihot esculenta ssp. flabellifolia e 17 não designadas – encontradas fora de áreas de cultivo e, portanto, desassociadas do cultivo tradicional.

Manihot esculenta ssp. flabellifolia é a espécie selvagem, domesticada há 9 mil anos. “A mandioca selvagem possui raízes que acumulam amido, mas não são tão grandes quanto as raízes das formas domesticadas”, disse Alves-Pereira.

“A mandioca selvagem também difere nas formas como é encontrada na natureza. Ela cresce na forma de grandes arbustos, em ambientes mais abertos, e como trepadeiras em ambientes fechados no meio da mata. Já as mandiocas domesticadas são arbustos de 1 a 2 metros de altura, menores e menos ramificados do que os arbustos selvagens”, disse.

Mas a principal diferença entre as diversas variedades de mandioca está no grau de toxicidade. A mandioca selvagem é uma planta muito venenosa. Suas raízes possuem elevado nível de substâncias precursoras do ácido cianídrico. O consumo in natura é potencialmente letal.

A domesticação da mandioca envolveu a seleção de variedades com menores teores de substâncias tóxicas, até chegar a um produto com teores mínimos, que pudesse ser consumido praticamente sem processamento.

A mandioca vendida em feiras, quitandas e supermercados é a mandioca-mansa, conhecida também como macaxeira ou aipim. Ela ainda contém certo teor de substâncias tóxicas, por isso não pode ser consumida imediatamente após ser colhida. É necessário cortar e descascar as raízes em pequenos pedaços e cozinhá-los para que as substâncias tóxicas sejam eliminadas.

Com a mandioca-brava é diferente. Ela conserva elevado teor de precursores do ácido cianídrico. Neste caso, a domesticação da mandioca-brava envolveu o desenvolvimento pelos índios de técnicas para retirar a toxicidade da planta.

Tais técnicas envolvem procedimentos como retirar a casca da mandioca, ralar a raiz, prensar a polpa resultante para retirar as toxinas, ferver a polpa para evaporar o ácido cianídrico, ou ainda fermentá-la para a produção de cauim, a bebida alcóolica tradicional nas sociedades indígenas do Brasil.

Para entender como foi o processo de disseminação do cultivo da mandioca, era preciso descobrir como e onde as formas mansa e brava se diferenciaram a partir do ancestral selvagem.

Uma vez no laboratório, a investigação de bancada de Alves-Pereira envolveu técnicas genéticas convencionais para a extração do DNA das células das folhas de mandioca. O passo seguinte foi buscar marcadores moleculares que pudessem servir como pontos de referência na comparação do genoma das diversas linhagens.

O geneticista buscou especificamente por microssatélites, que são pequenas regiões com sequências repetitivas e que ocorrem em todo o genoma. “A partir dos microssatélites, conseguimos estudar as relações genéticas entre os indivíduos. Usamos 14 microssatélites nucleares e quatro microssatélites cloroplastidiais”, disse.

Diversificação e domesticação

Ao comparar os genomas dos 596 indivíduos, começaram as surpresas. A variação genética detectada entre as diversas amostras não apontou um viés biogeográfico, ou seja, o estudo do genoma nuclear das amostras não revelou a existência de variedades regionais. “Achávamos que o estudo genético das variedades de mandioca fornecesse pistas sobre a disseminação do cultivo através dos rios amazônicos. Não foi o que aconteceu”, disse Alves-Pereira.

Segundo Zucchi, a expectativa era encontrar evidências genéticas para explicar a dispersão geográfica da mandioca. “Não conseguimos detectar variação significativa entre os indivíduos coletados em diferentes rios, como esperado. O que se detectou foi uma grande diversidade entre as variedades mansas e bravas”, disse.

Se a análise do genoma nuclear se mostrou inconclusiva, por outro lado o genoma do cloroplasto revelou algo desconhecido. Como a domesticação da mandioca é um processo que vem ocorrendo há milhares de anos, imaginava-se que, a partir de um ancestral selvagem, tivessem sido necessárias milhares de gerações até se chegar à mandioca mansa. A mesma lógica pressupunha que o surgimento da mandioca brava fosse fruto de um estágio intermediário na domesticação da mandioca mansa.

“Os dados apontaram, porém, um resultado esperado. A mandioca-mansa apresenta maior grau de heterozigosidade e uma divergência considerável quando comparada ao genoma da mandioca-brava”, disse Alves-Pereira.

No caso da mandioca-mansa, o maior acúmulo de heterozigotos (ou genótipos diferentes para um mesmo alelo), sugere a decorrência de um tempo mais longo de divergência da mandioca-mansa a partir da domesticação de uma mandioca selvagem.

Segundo Alves-Pereira, o menor grau de heterozigosidade observado no caso da mandioca-brava sugere que pode ter decorrido menos tempo desde a domesticação.

A evidência da menor endogamia para a mandioca-mansa reforça esta tese. Quanto maior ou mais antiga for a população de uma espécie ou de um grupo de indivíduos em processo de domesticação, menor será a chance de haver cruzamento entre irmãos ou primos “caso diferentes variedades sejam selecionadas para preferências distintas por agricultores diferentes”, disse Alves-Pereira.

Os maiores níveis de heterozigosidade e menor endogamia encontrados para a mandioca-doce podem ser vistas como a assinatura de um período de diversificação maior após sua domesticação. No caso da mandioca brava, com menor heterozigosidade e maior endogamia, seu período de diversificação pode ter sido menor.

“Concluímos que uma interpretação possível para os dados de variação genética, e como essa se distribui no espaço, era que a mandioca-mansa foi domesticada primeiro, há cerca de 9 mil anos, como sugerido na literatura genética e arqueológica. Só muito depois é que se domesticou a mandioca- brava. O processo de dispersão de ambas as variedades parece ter sido, portanto, bem diferente, tanto no tempo como no espaço”, disse Alves-Pereira.

A seleção pelas populações pré-colombianas de índios de variedades de mandioca selvagem com baixos teores de veneno até chegar à mandioca- mansa deve ter sido um processo mais antigo. Segundo Alves-Pereira, isso porque supõe-se que naquela época as populações amazônicas eram muito menores e nômades. Isso implica uma menor demanda de alimentos, que pode ser suprida por mandiocas-mansas manejadas perto das unidades familiares.

E quanto à mandioca-brava? Uma vez que se domesticou a mandioca-mansa, os antigos grupos de caçadores-coletores começaram a abandonar a vida nômade para se fixar em aldeias e cultivar suas mandiocas. O registro arqueológico indica que entre 4 e 3 mil anos atrás as populações pré-colombianas começaram a experimentar um aumento populacional. Para alimentar mais bocas, o cultivo de mandioca teve necessariamente que ser ampliado.

“O que se vê hoje na Amazônia é a mandioca-mansa comumente plantada no quintal da casa dos caboclos, e a mandioca-brava cultivada em áreas muito maiores: os roçados abertos na mata”, disse Alves-Pereira.

Era assim há 4 mil anos? O fato de a mandioca-brava ter sido domesticada em um momento de aumento de população das aldeias suscita uma questão ainda sem solução. Teria sido a necessidade de produzir mais alimento que obrigou os índios a procurar novas formas de alimentação, acabando em última instância por desenvolver técnicas de desintoxicação para poder consumir a mandioca-brava, ou foi a maior oferta de alimento decorrente da domesticação da mandioca-brava que possibilitou o adensamento populacional?

Esta não é uma questão que os geneticistas possam responder, mas é uma hipótese para guiar futuras escavações arqueológicas na Amazônia. De acordo com Zucchi, a pesquisa do genoma da mandioca prossegue. No momento, Alves-Pereira está analisando mais de 5 mil marcadores chamados SNPs (polimorfismo de nucleotídeo único), que estão sendo empregados para a construção de uma análise genética muito mais refinada.

O artigo Patterns of nuclear and chloroplast genetic diversity and structure of manioc along major Brazilian Amazonian rivers (doi:10.1093/aob/mcx190), de Alessandro Alves-Pereira, Charles R. Clement, Doriane Picanço-Rodrigues, Elizabeth A. Veasey, Gabriel Dequigiovanni, Santiago L.F. Ramos, José B. Pinheiro e Maria I. Zucchi, está publicado em https://academic.oup.com/aob/article-abstract/121/4/625/4791086.
 

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