Pesquisa investiga como a atuação dos ex-escravos no contexto pós-abolição é apresentada nas obras destinadas ao ensino fundamental e médio (foto: Ângelo Reinheimer / Fundação Ernesto Frederico Scheffel)

A representação do negro no livro didático
09 de novembro de 2017
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Pesquisa investiga como a atuação dos ex-escravos no contexto pós-abolição é apresentada nas obras destinadas ao ensino fundamental e médio

A representação do negro no livro didático

Pesquisa investiga como a atuação dos ex-escravos no contexto pós-abolição é apresentada nas obras destinadas ao ensino fundamental e médio

09 de novembro de 2017
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Pesquisa investiga como a atuação dos ex-escravos no contexto pós-abolição é apresentada nas obras destinadas ao ensino fundamental e médio (foto: Ângelo Reinheimer / Fundação Ernesto Frederico Scheffel)

 

José Tadeu Arantes  |  Agência FAPESP – O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) transformou o Estado brasileiro em um dos maiores compradores de livros do mundo. Quando as editoras inscrevem suas obras para concorrer à aquisição, uma série de requisitos devem ser cumpridos. E o edital define as características que podem contribuir para a aprovação ou a reprovação dos livros.

Uma pesquisa, conduzida na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, investigou como um tema tão polêmico quanto a representação do negro nos livros didáticos de História do Brasil pode ter sido afetado pelo PNLD, criado em 1985, mas que teve seu primeiro edital para o ensino médio apenas em 2008.

O estudo, realizado pela doutora em história Mírian Cristina de Moura Garrido, foi publicado em Escravo, africano, negro e afrodescendente – A representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012), com apoio da FAPESP.

“Dediquei atenção especial a três autores de livros didáticos campeões de vendas, com obras publicadas antes e depois de 2008. Queria saber se e como o processo de análise adotado a partir do PNLD influiu nos produtos finais”, disse Garrido à Agência FAPESP.

Os autores escolhidos foram Gilberto Cotrim, Mario Furley Schmidt e Antonio Pedro, cujas obras são utilizadas há muitos anos por professores. Foi enfocado especificamente como o período pós-abolição é tratado nos livros, em cotejo com a produção historiográfica relativa à época.

“A construção desse período é bastante diferente de um autor para outro, mas há características comuns. Todos destacam o fato de os ex-escravos não terem recebido qualquer tipo de reparação por parte do Estado, o que causou enormes dificuldades para sua inserção na sociedade. Mas nenhum dos autores incorpora em suas obras as contribuições da historiografia mais recente, elaborada principalmente na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que buscou entender as estratégias de sobrevivência adotadas pelos negros no período pós-abolição”, afirmou Garrido.

Como exemplo, a pesquisadora cita trecho de um livro de Antonio Pedro: “De modo geral, os antigos escravos não foram integrados no mundo do consumo para dinamizar o mercado, como pensam alguns historiadores. Quando se empregavam, trabalhavam alguns dias, apenas o suficiente para a sobrevivência. Nada mais lógico, pois para eles o trabalho significava a lembrança de séculos de submissão e desgraça. Preferiram o ócio. Isso dificultou ainda mais sua integração social, pois ficaram à margem dos bens que a sociedade produzia”.

“Na minha interpretação, essa afirmação está muito bem amparada na escolha historiográfica do autor, que ainda toma como cânones as formulações de Florestan Fernandes (1920-1995), segundo as quais o negro não foi integrado à sociedade de classes. Mas não coaduna com as formulações da historiografia mais recente. E, por isso, reitera uma concepção de negro submisso, de negro incapaz de se organizar, reforçando no estudante afrodescendente uma concepção negativa quanto à sua identidade”, disse Garrido.

Para a pesquisadora, a ideia da não inserção no mercado de trabalho é desmentida por estudos como o do brasilianista George Andrews. “Se na cidade de São Paulo não houve a integração de trabalhadores negros – não por incapacidade dos ex-escravos, mas pela grande disponibilidade de mão de obra europeia –, isso não ocorreu no Rio de Janeiro, que incorporou rapidamente trabalhadores negros em suas indústrias”, disse.

Na avaliação de Garrido, a desatualização das obras dos três autores frente à historiografia produzida a partir da década de 1990 faz com que elas não cumpram plenamente as determinações da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003 – depois atualizada como Lei 11.645, em 10 de março de 2008 –, que tornou obrigatório, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

Ela menciona, especificamente, o parágrafo primeiro do artigo 26-A, que dispõe: “O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil”.

“A partir da análise desses três autores, procurei discutir, em meu livro, o que oferecer aos estudantes, como aplicar a lei diante do material disponível – uma questão muito presente nas conversas dos professores de ensino fundamental e médio. Fiz uma análise da Lei 10.639, depois atualizada para 11.645, e das normas definidas em seguida, que são ainda pouco conhecidas. Até hoje, a maioria dos professores não conhece as diretrizes especiais para contemplar a lei. Essas diretrizes foram construídas no âmbito de uma intelectualidade negra militante e explicitam o que, na opinião desse grupo, deveria ser ensinado aos alunos, com exemplos de conteúdos e de dinâmicas de sala de aula”, disse Garrido.

“O que me intriga é que, depois da Lei 10.639, enquanto os textos dos livros didáticos foram mantidos, com todos os problemas apontados, as mesmas editoras passaram a publicar livros paradidáticos excelentes, escritos por especialistas da academia. Esses livros foram contemplados com vários prêmios, inclusive o Jabuti. E o Estado passou a comprá-los também. É uma questão instigante, que mencionei no final do livro, mas deixei em aberto, porque me faltaram fontes para ir mais fundo”, disse.

Ressignificação militante

Quanto aos termos “escravo”, “africano”, “negro” e “afrodescendente”, presentes no título de seu livro, Garrido explicou que procuram explicitar as sucessivas ressignificações sobre o que é ser negro no Brasil. “Os termos ‘escravo’ e ‘africano’ remetem ao período colonial, que ainda compõe a maioria do conteúdo dos livros didáticos”, disse.

Para Garrido o termo “negro” é uma ressignificação militante, decorrente da pressão do movimento negro para colocar na pauta das discussões a questão da discriminação racial.

“O termo ‘afrodescendente’ é uma formulação contemporânea, adotada especialmente durante a preparação do Brasil para a Conferência de Durban [III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001, em Durban, África do Sul], quando a representação brasileira e os militantes procuraram ficar afinados com toda a América Latina. Utilizo esse termo no final do título por ser a última ressignificação sobre o que é ser negro no Brasil, já incorporando a política e as disputas de poder”, disse.

Escravo, africano, negro e afrodescendente – A representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012)
Autora: Mírian Cristina de Moura Garrido
Editora: Alameda
Ano: 2017
Páginas: 200
Preço: R$ 46
Mais informações: https://goo.gl/CDjXUf.
 

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