Livro reúne estudos etnográficos sobre diferentes grupos de migrantes. E destaca o papel das relações de parentesco na construção do pertencimento

A produção da diferença em um mundo globalizado
10 de agosto de 2016

Livro reúne estudos etnográficos sobre diferentes grupos de migrantes. E destaca o papel das relações de parentesco na construção do pertencimento

A produção da diferença em um mundo globalizado

Livro reúne estudos etnográficos sobre diferentes grupos de migrantes. E destaca o papel das relações de parentesco na construção do pertencimento

10 de agosto de 2016

Livro reúne estudos etnográficos sobre diferentes grupos de migrantes. E destaca o papel das relações de parentesco na construção do pertencimento

 

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Voluntários ou forçados, grandes deslocamentos humanos sustentaram a história da modernidade: o tráfico de escravos, a transferência de colonos europeus para os territórios conquistados na América, África, Ásia e Oceania, os grandes fluxos migratórios do século XIX. Agora, como se fosse o retorno do bumerangue, imigrantes ou refugiados das ex-colônias buscam vida e trabalho nos centros hegemônicos. E esse movimento suscita novas ondas de xenofobia em um mundo cada vez mais globalizado.

Neste contexto, refletir sobre a diferença tornou-se um desafio urgente, não apenas para os estudiosos (antropólogos, sociólogos, historiadores etc.), mas também para toda e qualquer pessoa que queira ir além do noticiário superficial ou dos clichês do discurso político. Tal foi o objetivo que motivou o livro Deslocamentos e parentesco, produzido no Laboratório de Estudos Migratórios da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sob a coordenação de Igor José de Renó Machado.

O livro contou com apoio da FAPESP tanto na fase de pesquisa, por meio de auxílio do Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes concedido ao seu coordenador, quanto na fase de publicação, por meio da linha de fomento Auxílio à Pesquisa - Publicações.

“O material reunido no livro condensa cinco anos de pesquisas de campo e discussões teóricas realizadas no Laboratório de Estudos Migratórios (LEM). Durante esse período, que se estendeu de 2008 a 2013, meus alunos e eu realizamos trabalhos etnográficos junto a grupos muito diversificados, tendo como tema comum a relação entre deslocamentos e parentesco”, disse Machado à Agência FAPESP.

Para mencionar apenas alguns exemplos, foram investigadas situações como a construção de uma identidade japonesa por meio da prática do kendô; as emigrações de brasileiros de Governador Valadares e Gonzaga (Minas Gerais) para os Estados Unidos e a Europa; e a fabricação de relações de parentesco entre estudantes moçambicanos em Belo Horizonte.

Uma vez identificado o grupo com o qual pretendia trabalhar, cada pesquisador se deslocou para onde esse grupo estava e conviveu estreitamente com ele durante períodos de seis meses a dois anos. “Essa atitude etnográfica é uma espécie de marca registrada do LEM. Desde que criamos o laboratório, meus alunos e eu decidimos que iríamos trabalhar com etnografia, buscando em nossas pesquisas uma imersão muito grande, um contato muito íntimo com o tema de estudo. Não que toda a antropologia seja baseada em etnografia. Mas esta é, por assim dizer, seu método por excelência, método que, mais do que qualquer outro, possibilita ultrapassar o conhecimento superficial e produzir reflexões aprofundadas”, argumentou Machado.

A produção da diferença

Se a relação entre deslocamentos e parentesco foi o fio condutor que articulou situações tão heterogêneas, uma linha de força ainda mais profunda, articuladora do próprio binômio deslocamentos-parentesco, se evidenciou nas análises e reflexões realizadas ao longo do trabalho: a da produção da diferença. Diferença como aquilo que define um determinado grupo na medida em que o diferencia dos demais.

“Viver é produzir diferença. Produzir diferença é o meio de que todas as pessoas dispõem para se expressar no mundo. Dependendo da forma como se observa determinado conjunto de indivíduos, é possível explicitar menos ou mais diferenças. Por exemplo, se adotarmos como diferencial o conceito de etnia, poderemos falar de uma etnia negra no Brasil. Mas essa palavra engloba um enorme conjunto de indivíduos, que contém, em seu seio, uma diversidade incrível. E os diferentes recortes (gênero, etnia, opção sexual, religião etc.) se sobrepõem, gerando conjuntos cada vez mais específicos”, explicou o pesquisador.

Um exemplo citado por ele foi o da comunidade de japoneses e descendentes. Esse grande grupo já atua no país há mais de um século, desde que as 165 famílias, que atravessaram o oceano a bordo do navio Kasato Maru, desembarcaram no porto de Santos em 18 de junho de 1908. Nesse longo período, seus integrantes produziram diferenças em relação ao meio envolvente, quanto a outros grupos de imigrantes e entre si mesmos. “Não existe uma ‘japonesidade’ genérica. Há muitas formas diferentes de ser japonês no Brasil”, comentou.

Nem mesmo o fenótipo baseado no olho puxado pode ser considerado um elemento definidor, como demonstrou a pesquisa sobre o kendô realizada por Gil Vicente Lourenção. Nesse estudo, que demandou uma estadia de dois anos no Japão e resultou em um dos capítulos do livro, se constatou que muitos praticantes dessa arte marcial se envolvem em um processo de construção de “japonesidade”, e, embora não japoneses na origem, acabam sendo reconhecidos como tal pelos demais praticantes e até em um círculo mais amplo. Foi o que aconteceu, aliás, como o próprio Lourenção, ele mesmo um professor de kendô do quarto dan.

“A migração não está implícita no kendô. Mas, ao praticar essa arte marcial tão vinculada no imaginário ao etos dos samurais, alguns indivíduos começam a se interessar cada vez mais pelo Japão, viajam para lá, arrumam emprego, se casam e, eventualmente, se tornam ‘japoneses’ pelo resto da vida”, afirmou Machado.

Mimetização de família

Outro caso de construção de parentesco foi percebido por Yara Ngomane, em trabalho sobre estudantes moçambicanos em Belo Horizonte que resultou em outro capítulo do livro – o estudo contou com Bolsa da FAPESP.

A etnografia foi facilitada pelo fato de Ngomane ser, também, uma estudante moçambicana, graduada em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-graduada em Antropologia Social na UFSCar. Todos os estudantes pesquisados por ela vieram ao Brasil com bolsas do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG), criado em 1981 para facilitar o acesso de alunos de países em desenvolvimento aos cursos de pós-graduação de universidades brasileiras.

“Sem serem parentes de origem, esses estudantes moçambicanos acabaram reproduzindo entre si relações de parentesco similares às que tinham com suas famílias em Moçambique. Consideravam-se irmãos e irmãs, de forma tão intensa que não havia namoro ou relacionamento sexual entre os rapazes e moças do mesmo grupo, porque qualquer coisa nesse sentido possuiria uma conotação incestuosa. As moças namoravam moçambicanos que moravam em outra cidade. E os rapazes namoravam brasileiras ou africanas de outra origem. Mas, entre eles, a relação era de irmãos e irmãs”, resumiu o pesquisador.

A uma estudante um pouco mais velha, com apenas 25 anos, coube o papel de “mãe”, com algumas responsabilidades inerentes à função, como a de cozinhar nos domingos e ocasiões especiais. A comida, aliás, como observou Ngomane, era um importante fator de produção de pertencimento ou de diferenciação do grupo. Pratos considerados típicos, como carril de amendoim, arroz de coco ou xima (massa feita com fubá), funcionavam como marcadores de diferença e construção de “moçambicanidade”.

A pesquisa etnográfica desenvolvida pelo LEM evidenciou que, como regra, as pessoas que estão em deslocamento ou que descendem de pessoas que se deslocaram têm, na família, um referencial primeiro de pertencimento. No caso dos jovens moçambicanos ou dos praticantes de kendô, as respectivas “famílias” foram construções a posteriori. Porém uma outra dinâmica foi percebida nos estudos realizados por Fabio Stabelini em Governador Valadares e por Alexandra Cristina Gomes de Almeida, em pesquisa em Gonzaga, dois municípios próximos do estado de Minas Gerais.

Nestes casos, a família constituiu uma determinação prévia. Todo mundo tinha um irmão, um primo, um tio que havia emigrado. E as histórias dessas emigrações compunham uma espécie de repertório comum, que perpassava as relações familiares.

“Em Governador Valadares, e também em Gonzaga, que é uma cidadezinha próxima, a cidade onde nasceu o brasileiro Jean Charles de Menezes (1978 – 2005), confundido com um terrorista e morto pela Scotland Yard no metrô de Londres, o deslocamento é algo que já está implícito no sistema de parentesco. As pessoas crescem sabendo que vão emigrar, que aquilo faz parte da vida delas, e é determinante para a construção de seu futuro”, informou Machado.

“Como costuma se dizer, a emigração é algo que ‘está no DNA’ desses mineiros há muito tempo. O primeiro destino foi São Paulo. Mais tarde, quando São Paulo já não conseguiu mais atender a suas expectativas econômicas, foi natural que buscassem outro lugar: inicialmente os Estados Unidos, e, depois que ficou difícil entrar nos Estados Unidos, Portugal, Inglaterra e França”, prosseguiu.

Em Gonzaga, a pesquisa enfocou duas situações: o caso do homem que sai e depois volta para casar; e o caso do homem já casado que migra, deixando no Brasil a mulher e os filhos. “Alexandra estudou o drama das mulheres que ficam e têm dois tipos de vida, a vida enquanto o noivo ou marido está fora e a vida depois que ele volta. Em uma sociedade muito conservadora, muito machista, essa dinâmica gera uma série de conflitos na relação dos gêneros: a mulher desfruta de alguma liberdade enquanto o homem está fora, e depois é reintegrada em um regime de opressão quando ele volta”, descreveu o pesquisador.

Dinheiro: garantia e risco

Outro aspecto é que, muitas vezes, a migração coloca a família em situação de risco, porque pode acontecer de o homem encontrar no exterior uma companheira, e abandonar sua esposa ou noiva. O fluxo de dinheiro do emigrante funciona como uma espécie de garantia. Enquanto o dinheiro estiver chegando, existe a certeza de um vínculo. Quanto o dinheiro para de vir, isto se torna o sintoma de que alguma coisa deu errado, de que a pessoa eventualmente constituiu outra família em terra estrangeira. “Essa ordem de risco permeia toda a experiência migratória. Mas as pessoas têm consciência disso. Muitos casos são conhecidos e compõem um repertório comum”, destacou Machado.

“Nossas ferramentas teóricas nos permitiram adicionar uma nova camada de diversidade à reflexão sobre as migrações. As categorias tradicionais, de alguma forma, predeterminam quem faz parte do grupo ou não. E tendem a congelar relações que, na verdade, são muito mais fluidas. Sobrepondo à lente anterior lentes mais sutis, fizemos emergir uma série de diferenças significativas no interior de grupos que eram considerados homogêneos. No caso específico das relações de parentesco, percebemos que a maneira como as pessoas constroem esses vínculos se torna um diferencial característico do grupo”, sublinhou o coordenador.

Para o pensamento conservador, a incessante produção de diferenças constitui algo muito inquietante. O discurso conservador típico enfatiza o suposto perigo da diferença e preconiza sua eliminação. No caso específico da imigração, isso se expressa seja na imposição de barreiras à entrada de imigrantes, seja na exigência de que os imigrantes se tornem rapidamente “autênticos cidadãos nacionais”. “A verdade é que isso não existe. Não existe expressão no mundo sem produção de diferença”, comentou Machado.

Segundo o pesquisador, a questão a pensar é por que determinadas expressões de diferença se solidificaram em formas hegemônicas, por que determinadas expressões de diferença foram reificadas para compor um modelo que serve a forças sociais e políticas específicas. “Nosso ferramental teórico nos permite observar o fenômeno a partir de dois ângulos: tanto o da produção da diferença como algo interessante, criativo, como o da produção da não diferença como um recurso político de opressão”, afirmou.

“Muitas vezes, até o discurso multiculturalista, que se opõe ao discurso conservador, esconde essa tendência de reificacão de determinadas diferenças. Apresenta a sociedade como uma colcha de retalhos, com diferentes culturas convivendo harmoniosamente no mesmo espaço, mas não coloca em xeque a construção da similaridade cultural hegemônica em benefício da qual o Estado atua. Quando isso não é feito, uma diferença é definida como principal e as outras como adjacentes ou subordinadas”, continuou.

“A verdade é que, nas sociedades contemporâneas, está tudo misturado. A imagem da sociedade como uma realidade homogênea, atravessada de ponta a ponta pela cultura hegemônica, é fictícia. E a imagem da colcha de retalhos multicultural, com cada qual ocupando o seu quadradinho, muitas vezes encobre isso. E impede que as pessoas se desafiem a si mesmas no sentido de pensar as diferenças que estão em seu meio”, finalizou.

O estudo do LEM deverá prosseguir com novo apoio já aprovado pela FAPESP. Conforme o coordenador, haverá uma linha de pesquisa sobre imigrantes chineses no Rio de Janeiro. Outra sobre imigrantes congoleses em São Paulo. Uma terceira sobre colombianos. E uma quarta sobre os refugiados sírios.

Outros pesquisadores ainda não mencionados que contribuíram com capítulos do livro:Nádia Fujiko Luna Kubota, Érica Rosa Hatugai e Victor Hugo Martins Kebbe da Silva.

Deslocamentos e parentesco
Organizador: Igor José de Renó Machado
Editora: Edufscar
Ano: 2015
Páginas: 212
Preço: R$ 32,00
 

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